“Eu sou uma pessoa absolutamente civil, tanto que nem tenho uma caderneta de registro militar. Durante toda minha vida, eu me dediquei à consultoria política. Drones eram apenas um hobby meu, para filmagem em vídeo”, diz casualmente Alexei Viktorovitch Tchadaiev em um café de shopping center em Moscou.
Ele até soa convincente, com um ar jovial aos 47 anos. Mas trata-se do homem que virou em favor da Rússia a guerra dos drones de combate pessoal que marca o conflito com a Ucrânia, transformando uma startup de voluntários na empresa de defesa mais desejada do país.
Prova disso foi a lendária Kalachnikov ter buscado associar-se à Uchkuinik, centro de produção liderado por Tchadaiev em Veliki Novgorod, 550 km a noroeste de Moscou, cidade natal do empresário.
“Se comprassem nossa linha, não saberiam o que fazer”, afirma, no melhor estilo unicórnio. Ao fim, desenvolveram um drone armado com um dos famosos fuzis da empresa que está em produção limitada por ora.
O motivo de todo esse interesse? O drone de observação e ataque controlado por fibra óptica KVN, que colocou os russos pela primeira vez à frente de Kiev na corrida tecnológica dos veículos não tripulados empregados em campo —quando o assunto são os modelos de longo alcance, Moscou tem vantagem, principalmente numérica.
Sua origem é tão surpreendente quanto a de Tchadaiev, historiador cultural por formação: um modelo de brinquedo chinês.
Tudo começou em maio de 2014. “Vários amigos meus morreram no massacre de Odessa. Foram queimados vivos”, conta o empresário, em referência a um episódio em que ativistas pró-Ocidente incendiaram um prédio onde se refugiavam manifestantes contrários à derrubada do governo pró-Rússia em Kiev, matando 46 deles.
Ele passou a reunir amigos para enviar drones comerciais chineses para os separatistas da guerra civil no Donbass, leste russófono da Ucrânia.
Com a invasão russa de fevereiro de 2022, o cenário mudou. “Mandei meus drones e aumentei a arrecadação. Dois meses depois, descobri que a maioria dos drones não sobrevivia ao primeiro voo porque as pessoas não sabiam como usá-los.”
Daí ele passou a treinar operadores, mas a escala era proibitiva. Passou a ensinar instrutores, o que começou em agosto de 2022 em um evento chamado Dronnitsa.
“Treinamos até meados de 2023 uns 2.000 instrutores, mas era um trabalho voluntário, não um negócio. Na Dronnitsa daquele ano, decidimos que era preciso começar a produzir nossos próprios drones. E isso era impossível apenas com o financiamento coletivo”, relata.
O encontro foi realizado em Veliki Novgorod. “O governador local, que é meu amigo, escreveu uma carta para Vladimir Putin propondo a criação de um centro para a produção de drones”, afirma. Deu certo, abrindo o cofre dos fardados.
No evento de 2023 foi gestado o KVN, cujas iniciais em russo significam “Príncipe Vândalo de Novgorod”, um líder mítico da cidade —algo ao gosto de Tchadaiev, cujo nome da empresa é dos antigos piratas de rios da região. “Fizemos uma competição de fabricantes de drones e de sistemas de guerra eletrônica. Tudo o que voava foi derrubado.”
“Percebemos que era preciso ter comunicação direta entre drone e operador, sem espectro de rádio. Uma hipótese era controle por laser, mas aí o problema era linha de visão direta”, lembra. No fim, a solução veio de drones infantis chineses, com um carretel de fibra óptica ligando o aparelho ao controle semelhante a um joystick de videogame.
O processo de desenvolvimento durou oito meses, e o principal desafio era fazer com que o carretel não emperrasse. Em 26 de junho de 2024, o primeiro KVN voou. “Foi bem em tempo para Kursk”, conta Tchadaiev.
Em 4 de agosto, as forças de Volodimir Zelenski lançaram a surpreendente invasão da região no sul da Rússia. “A Ucrânia levou para lá novos sistemas de guerra eletrônica, deixou no chão tudo o que o Exército russo tinha naquela época, até o [drone de ataque] Lancet. Tomamos, então, a decisão de não apresentar o KVN ao governo, e sim carregar um caminhão com os 230 modelos prontos e ir a Kursk”, diz.
“O resultado foi fantástico em termos de destruição de equipamento, e a alta qualidade dos vídeos produzidos ajudou no moral, viralizando nas redes sociais”, disse.
Hoje, a estimativa oficial russa é de que cada dólar gasto no modelo de US$ 500 se reverteu em cerca de 40 a 100 vezes o valor em material militar ucraniano destruído —um total de US$ 3 bilhões até setembro, segundo Tchadaiev.
O aparelho parece o brinquedo em que se inspirou. Tem quatro hélices e pode levar uma carga bélica de até 6 kg, como uma granada PG-7V, para ser solta sobre o alvo. Os 20 km de cabo de fibra óptica enrolados, dizem militares ucranianos, travam em 20% das ocasiões.
Mas o efeito foi devastador em Kursk, criando um estudo de caso. No começo deste ano, as forças de Zelenski fizeram uma ofensiva no ponto mais fraco das defesas russas para escapar do cerco que se formava, usando 50 blindados ocidentais e suas melhores tropas.
“Nossas forças recuaram, mas havia oito times equipados com nossos drones espalhados na área. Eles destruíram 42 dos 50 blindados, e a infantaria se escondeu em plantações. Em poucos dias, estavam acabados”, conta, rabiscando o cenário num guardanapo. Em maio, a ocupação acabou.
O que salta aos olhos é que tudo foi feito de forma horizontal, sem comando vertical típico do Exército russo e de outros. Os soldados se comunicavam por grupos de Telegram. “É uma guerra de gadgets. O drone é um celular que tem um alvo”, diz Tchadaiev.
É uma mudança de mentalidade que se confunde também com a juventude das tropas. Ele conta que, em Kursk, descobriu que soldados que lutavam com drones contra ucranianos de dia os enfrentavam virtualmente à noite em jogos online como o World of Tanks (mundo dos tanques, em inglês). “É insano.”
Depois de Kursk, os KVNs foram para as linhas de frente ucranianas. De algumas centenas por mês, são feitos hoje aos milhares, com números sigilosos. A startup de 20 voluntários também cresceu e tem fábricas espalhadas pelo país para evitar ataques retaliatórios disruptivos, empregando milhares de pessoas, segundo Tchadaiev.
Pegando outro guardanapo, ele esboça um KVN e começa a apontar o seu principal problema: a dependência de peças de fora. Enquanto a estrutura, hélices e o motor elétrico são russos, não há câmeras suficientes no mercado local. Baterias e os sistema de fibra óptica são na maioria chineses.
A China tem algumas das empresas líderes do setor no mundo, como a YOFC, que domina 20% do mercado. A importação nem sempre é direta, muitas vezes com triangulação por países da Ásia Central.
Há outros óbices. “É impossível substituir essa importação, ainda que não precisemos de chips avançados. Pode ser um chip automotivo, por exemplo”, afirma.
A disputa segue. Além de desenvolver seus próprios drones de fibra óptica, os ucranianos também se defendem deles, criando redes sobre trechos de estrada para que seus veículos possam trafegar perto da linha de frente.
Qual é o passo seguinte? “No futuro muito próximo, o aumento de velocidade, de motores elétricos para a jato”, diz. “Depois, temos de remover o operador da linha de frente. Acho que no ano que vem eles já estarão sentados aqui em Moscou”, afirma. Hoje a “zona da morte” nos fronts chega a 50 km de largura, onde tudo é alvo para os rivais.
“A Rússia tinha a tradição de olhar para o Ocidente na hora de desenvolver armas. Esta guerra mostrou que estava errada. Nos EUA, drones são aeronaves, grandes, caros. Olhamos então para o pessoal do Oriente Médio, que usa materiais baratos. O Shahed [modelos de ataque iraniano replicado e aperfeiçoado pelos russos] é o equivalente a um drone israelense caro do qual tudo que era supérfluo foi removido”, afirma.
Os robôs não são panaceia, diz o russo. “Ela é uma arma direcional. Um drone, um alvo. Isso funciona contra a Otan e a Rússia, onde há poucos alvos e todos são grandes e caros. Mas e quando os alvos estão dispersos e são baratos?”, especula.
“A próxima revolução será o abandono de qualquer imprecisão. Não como uma bomba atômica que destrói tudo, mas sim uma arma que destrói apenas certos tipos de alvos”, diz, apontando então para a já amplamente usada nos campos de batalha IA (inteligência artificial).
Tchadaiev sofre sanções europeias, tem a cabeça a prêmio na Ucrânia e anda com um discreto guarda-costas. “Não me incomoda. Quando eu assessorava políticos nos anos 1990 em Moscou era muito mais perigoso”, brinca. Ele diz que o negócio “não dá dinheiro, a margem é mínima”, e que abrirá um centro de estudos quando a guerra acabar.