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80 anos de Gonzaguinha – 02/10/2025 – Djamila Ribeiro

Se estivesse entre nós, Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, o Gonzaguinha, completaria 80 anos neste último setembro. O menino franzino tantas vezes considerado “raivoso”, sensível e ousado demais, segue com sua voz solta, palavra por palavra ecoando nas frestas do nosso tempo, precisamente porque ousou ser livre. Entregou-se aos sentimentos sem reservas, transformou o protesto em poesia e legou ao Brasil cânticos atemporais.

Em tempos em que a entrega no palco tantas vezes se torna plástica, ensaiada, e até o protesto parece encenado para caber em hashtags, Gonzaguinha permanece um farol intransigente de autenticidade. Se o post da semana confere a muitos ares de engajamento e “diploma de bem-comportado”, Gonzaguinha não viveu tanto para ver o ambiente como tal. Mas quem sabe sua esperança remanescesse com a moçada que segue em frente construindo a manhã desejada. Quem sabe, pois sua raiva de transformação era exigente.

Olhar para a obra de um artista chamado tantas vezes de difícil é notar que difícil mesmo é o país que naturaliza a fome, a desigualdade social, a violência misógina, o racismo. Em meio a distração e anestesia, ouvir Gonzaguinha é repelir a apatia que nos acomete.

É por isso que sua obra se tornou tão popular entre trabalhadores e trabalhadoras, estudantes e movimentos sociais: porque traduzia, em linguagem direta e poética, a mistura de indignação e esperança que marca a vida de quem luta. “Ah meu Deus, eu sei que a vida devia ser bem melhor e será! Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita!“.

Ao revisitar os vídeos de suas apresentações, o que me emociona, além da qualidade musical, é a intensidade, diria, visceral. Havia uma dor genuína em sua voz, marcas de uma batalha interior que vinha em seu rosto. Seu canto formava um campo de força que convidava o público a sentir junto, a partilhar da sua jornada humana. E o público sublimava. Era uma comunhão, não um consumo —enquanto ele, em sua complexidade, permanecia misterioso.

A escritora e poeta estadunidense Maya Angelou tem uma fala célebre: “Eu sei por que o pássaro canta na gaiola”. Ela se referia à resiliência, à dor e à esperança contidas nos cantos dos afro-americanos escravizados nas plantações ou no sábio cantarolar de sua avó frente a uma humilhação racial sobre a qual nada podia fazer. É um canto que brota da opressão, como uma forma de suportá-la e transcendê-la.

Lembrei-me de suas palavras pois, em sentido diverso, Gonzaguinha parecia também oscilar entre a gaiola e o voo. Atravessou a ditadura, enfrentou censura —parte significativa de sua obra foi podada—, mas talvez não fosse apenas essa a gaiola que o cercava.

O filme “Gonzaga – de Pai para Filho” sugere um outro cárcere: a relação ambígua com o pai, Luiz Gonzaga, rei do baião. Havia ainda a ausência materna de Odaleia Guedes dos Santos, cuja partida lhe deixou saudades e feridas.

Talvez a vida nos apresente muitas gaiolas antes de aprendermos a voar com as nossas próprias asas, quebradas ou não. E, num paradoxo cruel, às vezes a própria rebeldia se torna uma nova prisão, quando o público e a crítica insistem em reduzir um artista a um mero porta-voz de uma luta, negando-lhe a humanidade multifacetada.

Por isso, sua grandeza esteve também em desagradar, em não se deixar aprisionar nem pela crítica nem pelo público. Para voar além, cantou músicas de amor, de ternura. Ele que denunciou como quem sangra, banhou-se no “lindo lago do amor”.

Quando o “filho curioso” perguntou “o que é amor?”, ele respondeu: “Delicadeza, amor, teu nome é rosa, daquela sem mazelas e espinhos, daquela com perfume o tempo inteiro e que a gente quer plantada no jardim do nosso peito, té morrer”. E sentindo a felicidade, transcendeu qualquer gaiola: “Ah-ah, que céu! Mamão com mel, e eu nem preciso asas pra voar. Melhor é bem difícil de sonhar. Amar, viver, sentir a vida com você, ma’ que prazer”.

Como afirma Simone, amiga que fez nos palcos, Gonzaguinha é agridoce. Convoca-nos a sermos críticos diante da injustiça, do sufoco, mas também a desfrutarmos da leveza. É um convite ao forró com o pai, às tardes de poesia com amigos, à consciência crítica que seja também emocional. Uma luta a ser travada no campo, na fábrica, na escola, na cozinha, na universidade —e dentro de nós.

Que sua existência inspiradora siga sendo farol de lucidez. Viva Gonzaguinha!


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