O presidente Donald Trump decidiu que os Estados Unidos estão envolvidos em um “conflito armado” formal com cartéis de drogas que seu governo classificou como organizações terroristas e que os supostos traficantes desses grupos são “combatentes ilegais”.
A decisão foi comunicada em aviso de circulação controlada ao Congresso americano nesta semana. O comunicado oficial foi enviado a vários comitês do Congresso e obtido pelo The New York Times.
O texto dá mais detalhes sobre a fraca fundamentação jurídica do governo federal que tenta sustentar a legalidade dos três ataques feitos pelas Forças Armadas americanas, ordenados pelo presidente, contra barcos no mar do Caribe no mês passado, matando um total de 17 pessoas, segundo a Casa Branca.
A decisão de Trump de considerar formalmente sua campanha contra cartéis de drogas como um conflito armado ativo consolida a reivindicação do republicano de poderes extraordinários de guerra, segundo especialistas jurídicos.
Em um conflito armado, conforme definido pelo direito internacional, um país pode legalmente matar combatentes inimigos mesmo quando não representam ameaça, detê-los indefinidamente sem julgamento e processá-los em tribunais militares.
Geoffrey Corn, um advogado-geral juiz aposentado que foi o conselheiro sênior do Exército para questões de direito de guerra, afirmou que os cartéis de drogas não estavam envolvidos em “hostilidades” —atos de guerra, o padrão para quando há um conflito armado para fins legais— contra os Estados Unidos porque vender um produto perigoso é diferente de um ataque armado.
Observando que é ilegal para os militares atacarem deliberadamente civis que não estão participando diretamente das hostilidades —mesmo suspeitos de crimes—, Corn chamou a medida do presidente de “abuso” que ultrapassou um importante limite legal.
“Isso não é esticar a corda”, disse ele. “Isso é rasgá-la. Isso é despedaçá-la.”
A Casa Branca não respondeu a um pedido de comentário do New York Times.
O governo Trump havia chamado os ataques no Caribe de legítima defesa, afirmando que os alvos estavam contrabandeando drogas para cartéis designados como terroristas e invocando leis de guerra para justificar matá-los em vez de prendê-los. A gestão federal também ressalta que 100 mil americanos morrem anualmente por overdose.
O foco dos ataques da gestão, no entanto, tem sido barcos da Venezuela. O aumento das mortes por overdose nos últimos anos foi impulsionado pelo fentanil que, segundo especialistas em tráfico de drogas, vem do México, não da América do Sul. Além de problemas factuais, o argumento base tem sido amplamente criticado por especialistas em direito de conflitos armados.
O aviso ao Congresso, de circulação controlada mas cuja informação não é considerada confidencial, cita um estatuto que exige relatórios aos legisladores sobre hostilidades envolvendo Forças Armadas dos EUA. Ele repete os argumentos anteriores do governo, mas também vai além com novas alegações, incluindo retratar os ataques do Exército americano a barcos como parte de um conflito ativo e perene, em vez de atos isolados de suposta legítima defesa.
O texto diz que Trump determinou que cartéis envolvidos no contrabando de drogas são “grupos armados não estatais” cujas ações “constituem um ataque armado contra os Estados Unidos”. E cita um termo do direito internacional —um “conflito armado não internacional”— que se refere a uma guerra com um ator não estatal.
“Com base nos efeitos cumulativos desses atos hostis contra os cidadãos e interesses dos Estados Unidos e nações estrangeiras amigas, o presidente determinou que os EUA estão em um conflito armado não internacional com essas organizações terroristas”, diz o aviso ao Congresso.
Existem diferentes tipos de guerras, e o conceito de “conflito armado não internacional”, foi desenvolvido no direito do século 20 para significar uma guerra civil em um país, em oposição a uma guerra entre dois ou mais Estados-nação.
Após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, quando os Estados Unidos entraram em guerra contra a Al Qaeda —um ator não estatal operando em vários países— alguns estudiosos do direito objetaram que o país estava esticando as regras para justificar o uso de poderes de guerra contra um grupo que eles comparavam mais a uma gangue criminosa de piratas.
Mas a Suprema Corte considerou que o conflito com a Al Qaeda era uma guerra real. Ela deu aval ao uso pelo governo de George W. Bush do poder de guerra para manter membros capturados da Al Qaeda em detenção indefinida sem julgamento, ao mesmo tempo em que dizia que o governo estava obrigado pelas Convenções de Genebra a tratar esses prisioneiros humanamente e não torturá-los.
O raciocínio do tribunal, no entanto, baseou-se no fato de que a Al Qaeda havia atacado os EUA usando aviões sequestrados como armas para matar pessoas intencionalmente, e que o Congresso havia autorizado o uso da força armada contra ela.
Em uma decisão de 2006, o tribunal também rejeitou a primeira tentativa da gestão Bush de usar comissões militares, dizendo que os legisladores precisavam autorizar explicitamente seu uso.
Neste caso, o governo Trump confunde o tráfico de um produto de consumo ilícito e perigoso com o uso da força e um ataque armado. O Congresso não autorizou o uso de qualquer tipo de força militar contra cartéis.
O governo dos EUA tem rotineiramente dito que está envolvido em uma metafórica “guerra às drogas”. A decisão de Trump contida no aviso ao Congresso é importante por razões legais: a polícia prende suspeitos de tráfico de drogas; seria um crime, em vez disso, executá-los sumariamente. Mas em um conflito armado, é legal matar combatentes da força oposta.
O aviso ao Congresso também justificou o ataque mais recente a uma embarcação no Caribe chamando a tripulação de “combatentes ilegais”, como se fossem soldados em um campo de batalha.
“O navio foi avaliado pela comunidade de inteligência dos EUA como afiliado a uma organização terrorista e, na época, envolvido no tráfico de drogas ilícitas, que poderiam eventualmente ser usadas para matar americanos”, diz o aviso. “Este ataque resultou na destruição do navio, dos narcóticos ilícitos e na morte de aproximadamente três combatentes ilegais.”
O aviso ao Congresso não nomeou especificamente nenhum dos cartéis de drogas com os quais Trump afirma que o país está envolvido em um conflito armado. Também não especificou quais padrões o governo usa para determinar se suspeitos específicos têm ligações suficientes com tais grupos para que os militares os matem.