Chegar no baile ou no samba do fim de semana e pedir um copão com uísque, energético e gelo de coco virou, de um dia para o outro, sentença de morte. O copo grande e pesado na mão já não é só bebida: antes sinal de status e inclusão na periferia, agora também representa risco, sobretudo em territórios onde falta fiscalização e a falsificação faz parte da rotina. Como na moda, o que importa não é a autenticidade, mas a possibilidade de mostrar que também se está dentro da festa. Para a favela, o que pesa é o que cabe no bolso, e é nesse gesto de exibir que se afirma a presença.
O final de setembro trouxe a confirmação de que ao menos cinco pessoas morreram por intoxicação com metanol em bebidas adulteradas, em meio a sete casos confirmados de envenenamento. A Secretaria de Saúde divulgou que foram apreendidas 112 garrafas suspeitas, sendo 17 delas na Mooca, e que 15 casos ainda estão sob investigação. Além da capital paulista, em Pernambuco, houve registro de duas mortes suspeitas por causa semelhante.
Novidade no centro, mas nos extremos de São Paulo o alerta já circulava por adegas e bares. Segundo reportagem do UOL, donos de bares das zonas leste e sul e do ABC avisavam clientes próximos desde o início do ano que destilados e até cervejas estavam sendo adulterados. O risco, portanto, não foi surpresa: quem vive longe do centro já sabia que o barato podia sair caro.
No entanto, não é à toa que as marcas de bebidas aparecem com força no rap e no funk. Em “Desce Licor”, Tasha & Tracie cantam “desce licor 43, garrafa de Cîroc”. Teto batizou um de seus maiores hits de “Royal Salute”, referência a um dos uísques mais caros do mundo. Já MC Hariel, em “Maçã Verde”, fala do sabor do Jack Daniel’s, o que rendeu até patrocínio da marca para o cantor.
A presença desses nomes nas letras mostra que a bebida, assim como o tênis ou a corrente, faz parte da estética do pertencimento. Mas, fora da letra, o uísque que cabe no bolso dificilmente é original, e quando vem adulterado, o risco não é simbólico, é letal.
Essas letalidades não caem do céu —fazem parte de um padrão nacional de vulnerabilidade periférica e expansão do mercado ilegal de bebidas. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o mercado clandestino de álcool já fatura R$ 57 bilhões ao ano, com crescimento de 224% entre 2017 e 2023. Em 2024, o total estimado chegou a R$ 88 bilhões, com cerca de 36% dos destilados falsificados. O barato, que garante acesso e inclusão, é justamente o que empurra a favela para o risco.
O direito à celebração e o comportamento estético periférico nos colocam cercados por morte, seja pela mão armada ou pelo copo envenenado. Esse duplo cerco mostra como até a estética da celebração, que deveria ser liberdade e pertencimento, se transforma em vulnerabilidade.
Festejar é direito, com música, dança e copão, mas também deveria ser um ato de viver sem medo. Até agora, para quem mora nas periferias, esse direito está sempre à beira da tragédia, uma desigualdade que insiste em transformar celebração em luto.
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