Em dado momento de “Coração de Lutador”, um drama humano se esboça —Dawn (Emily Blunt), a namorada do lutador de vale-tudo Mark Kerr (Dwayne Johnson) aparece sozinha, voando para Tóquio, onde Mark prepara-se para um grande torneio.
A primeira reação do espectador sentado na poltrona é: mas o que essa mulher pretende? Tirar a concentração do namorado num momento decisivo de sua carreira? Teve convite para acompanhá-lo? Não, não teve.
Mas pensar assim não será uma reação machista? Pode ser. Então vamos ver onde isso vai dar.
O que acontece depois é que essa situação vai conhecer algumas variações. Durante alguns poucos minutos —das duas intermináveis horas do filme— ouviremos argumentos de parte a parte.
Nada excepcional, mas seu interesse vem justamente disso —a frágil mulher e o brutamontes retomam, em linhas gerais, as tensões da vida doméstica de mais ou menos qualquer casal. E o filme as capta —ela se queixa que ele só quer saber dos amigos. Ele responde que não é bem assim, que precisa deles para o seu trabalho.
Ambos se gostam muito, de maneira que uma cena pode começar aos beijos e abraços e terminar em quebra-quebra de objetos: uma vasilha vai ao chão, uma porta é quebrada a murros.
É uma pena que esses flashes logo sejam substituídos pelos dramas do ringue, pois conseguem mostrar com propriedade essa coisa rara que são as tensões da vida em comum de duas pessoas. E o drama no ringue de vale-tudo é mais do que elementar —trata-se de arrebentar o adversário antes que outro o arrebente.
Ninguém pense em dramas morais do tempo dos filmes sobre boxe. E nem é que seja impossível tratar desse assunto de maneira mais apropriada. É o que fez Darren Aronofsky em “O Lutador”.
Aqui, no vale-tudo, vale tudo. O objetivo é destroçar o adversário com joelhadas, murros na cabeça do cara caído, mordidas, chutes onde for possível. A modalidade tem muitos fãs, o que leva a pensar no que pode andar desarranjado no século 21. Tem muita coisa, como sempre, mas o que levará alguém a se interessar, mais, a se apaixonar por essas demonstrações de brutalidade?
Quem pode responder a essa questão, além de psicólogos e psicanalistas talvez seja, por exemplo, a parte da crítica americana, que já premiou o filme e por pouco não coloca Dwayne Johnson na categoria de possível sucessor de Robert De Niro ou Al Pacino.
No mais, o filme mostra um personagem com um lado frágil, que se droga, tem um amigo sincero e tal. Pode ser, mas o grande problema existencial que se coloca para ele e o melhor amigo, o também lutador Mark Coleman (Ryan Bader) é o que fazer quando um tiver de enfrentar o outro: esmurrá-lo até que fique desfigurado, diz um deles, mas tudo será pela lealdade entre combatentes.
Num filme em que se passa boa parte do tempo observando a monstruosa forma física de Mark —há um quê de monstruoso nisso tudo—, é preciso louvar a honestidade do título americano, que aqui virou subtítulo. “The Smashing Machine” pode significar máquina de triturar ou de destruir mas, em outra leitura, poderia ser máquina de deslumbrar —mais ou menos isso, em tradução picareta.
Ao espectador cabe escolher entre o horror da destruição ou o deslumbramento com a sangueira nos rostos massacrados. No entanto, não é possível dizer que este seja um filme sem direcionamento. Pode interessar a um público para quem a vida consiste em batalhar cotidianamente pela sobrevivência.
Não seria caso de uma deformação (espiritual), mas da estreiteza das experiências que o cinema oferece hoje a esse espectador. Esse público já foi mais sutil, mas talvez ainda ele perceba algo interessante nesse filme que, francamente, me escapa.