O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vetou pontos do projeto que flexibiliza a Lei da Ficha Limpa por entender que poderiam beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Técnicos do Congresso Nacional e mesmo políticos governistas avaliavam que, da forma como a matéria foi redigida, essa chance era remota. O Planalto preferiu excluir totalmente essa possibilidade.
Foram retirados do texto trechos que restringiam a inelegibilidade a políticos que tivessem sido eleitos, mas com diplomação suspensa ou cassação de mandato. Além disso, foram suprimidos trechos que previam a aplicação retroativa da regra.
A proposta foi aprovada pelo Senado no início do mês com grande esforço do presidente da Casa, Davi Alcolumbre (União-AP). Também teve apoio do presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, e do ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda.
Cunha e Arruda foram condenados em processos e tentam voltar a cargos eletivos, daí o interesse no projeto. A autora da proposta foi a deputada Dani Cunha (União-RJ), filha do ex-presidente da Câmara. Arruda ligou para diversos senadores pedindo votos a favor da proposta.
Ainda não há uma análise consensuada no Congresso sobre o que acontecerá com o veto presidencial. Líderes da Câmara e do Senado ouvidos pela Folha sob condição de reserva não têm certeza se Alcolumbre se empenhará para derrubar a medida de Lula e restituir o texto como foi aprovado pelo Legislativo –para isso, precisa marcar uma sessão do Congresso e ter o voto da maioria dos deputados e senadores.
Rejeitar o veto seria um estresse na relação entre Alcolumbre e Lula, hoje aliados. O presidente do Senado, assim como o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), almoçou com o chefe do governo nesta terça-feira (30).
Segundo Motta, o veto a partes da Lei da Ficha Limpa não foi tratado no almoço, que teve outros assuntos como medidas provisórias e o projeto de isenção do Imposto de Renda. De acordo com fontes do governo, Lula não ouviu reclamações dos presidentes das duas Casas a respeito do veto.
Há uma avaliação de que o calendário para análise de vetos presidenciais está apertado, e que há outros mais urgentes. Também pesa o desgaste de demonstrar, novamente, apoio a um tema impopular um ano antes das eleições. Mudanças em regras eleitorais só valerão nas próximas eleições se forem implementadas ao menos um ano antes do pleito. Ou seja, até 4 de outubro.
Além disso, Lula sancionou um dos pontos politicamente mais sensíveis do projeto, o que muda o marco da inelegibilidade da eleição para a diplomação. Parece uma mera formalidade, mas, na prática, pode deixar políticos inelegíveis por apenas uma eleição nacional em vez de duas.
O projeto aprovado pelo Congresso estabelecia a inelegibilidade para o político condenado pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, “por comportamentos graves aptos a implicar a cassação de registros, de diplomas ou de mandatos”.
Na justificativa do veto, o governo ressaltou que a proposta abria margem para restringir a aplicação da inelegibilidade apenas aos candidatos eleitos e aos que tiveram o registro indeferido, o que enfraqueceria o alcance da legislação atual.
Isso excluiria, portanto, situações como a de Bolsonaro, que não ocupava cargo eletivo quando foi condenado, o que poderia afastar a inelegibilidade já imposta.
“Tal cenário contraria a lógica de proteção da legitimidade do processo eleitoral, pois restringe o alcance da sanção apenas aos casos em que a prática abusiva se converteu em mandato efetivo”, aponta a justificativa.
Bolsonaro foi condenado pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) por abuso de poder político, no caso dos ataques às urnas em encontro com embaixadores; e econômico, pelo uso eleitoral das comemorações do Bicentenário da Independência, em 7 de setembro de 2022. A decisão do TSE aconteceu em 2023, quando ele já não era mais presidente.
O ex-presidente não teve cassado seu registro de candidatura —não sofreu também perda do diploma nem do mandato, já que não foi eleito. Segundo a decisão do TSE, a cassação só não ocorreu pelo fato de a “chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita”.
No início do mês, quando o projeto foi votado no Senado, o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), chegou a propor uma emenda para alterar esse trecho. A sugestão de Randolfe não foi aceita de pronto, mas houve um acordo entre os senadores sobre uma nova redação, e prevaleceu a leitura de que não havia benefício a Bolsonaro.
A supressão desse ponto acabou sendo sugerida posteriormente pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, o que levou ao veto presidencial.
A proposta aprovada pelo Congresso altera trechos da Lei da Ficha Limpa e diminui o período durante o qual pessoas que foram condenadas ou tiveram os mandatos cassados ficam sem os direitos políticos, com prazo máximo de oito anos ou doze anos, em casos cumulativos.
O texto foi publicado nesta terça-feira (30) no Diário Oficial da União.
Outro trecho vetado alterava o prazo inicial para a contagem e os critérios de inelegibilidade por abuso de poder econômico ou político.
Em muitos casos a pena só passa a contar após o trânsito em julgado dos processos ou após o fim do mandato em que ocorreu a prática abusiva. Dessa forma, atualmente, a condenação deixa o político fora da disputa por duas eleições para Câmara ou Senado, por exemplo.
O projeto aprovado antecipa essa contagem para a diplomação. Com isso, mesmo se ficar oito anos inelegível, um político perde a chance apenas de concorrer em uma eleição para Câmara ou Senado, não duas.
Entre os trechos vetados também está o retroativo para novas regras. O texto aprovado pelo Congresso determinava que as novas regras sobre contagem de prazos em casos de improbidade também se aplicariam a processos em curso e já julgados.
Além disso, previa que o limite máximo de 12 anos de inelegibilidade também se aplicaria a quem já estivesse inelegível. No entanto, esses dois dispositivos não entraram em vigor.
Sem retroatividade, as mudanças valem apenas para casos futuros. Quem já estava inelegível não poderá pedir revisão automática do prazo para se beneficiar do limite de 12 anos ou de regras de conexão.
Nesta terça-feira (30), o Instituto Não Aceito Corrupção criticou a nova lei dizendo que ela desfigura o coração da Lei da Ficha Limpa, estabelecendo reduções generalizadas nos prazos de inelegibilidade, além de aliviar substancialmente sua forma de contagem.
Na avaliação da organização, a Lei da Ficha Limpa é um dos poucos instrumentos legais em vigor oriundos de um projeto de iniciativa popular. Para o grupo, ao tentar alterar suas regras, o Congresso estaria legislando em causa própria.
“Legisla-se novamente em causa própria visando abreviar o retorno à vida política dos violadores da lei, ao arrepio dos princípios da impessoalidade, da moralidade administrativa, da prevalência do interesse público, caracterizando-se verdadeiro ato de abuso do poder de legislar, a exemplo da PEC da Blindagem”, disse em nota.