Estes são os últimos dias do governo de Luis Arce e de um período de 20 anos da esquerda no poder na Bolívia. E talvez nem o mais habilidoso e criativo narrador pudesse imaginar como as coisas se encaminhariam desde que “Lucho”, como é conhecido, assumiu o poder em 2020.
A gestão do economista foi marcada pelos embates constantes com o ex-presidente Evo Morales (2006-2019), seu antigo padrinho político e aliado de primeira hora que agora vive como foragido da Justiça em um bunker no coração da produção de coca.
A economia boliviana degringolou —as reservas de gás diminuíram, e o potencial do lítio ainda é subaproveitado. O resultado foi a derrota nas urnas.
Na missão consular da Bolívia em Nova York, onde estava para a Assembleia-Geral da ONU, Arce concedeu à Folha esta entrevista derradeira de sua gestão. Ele diz que Evo, embebido em ambição e personalismo, é o culpado pela derrota da esquerda.
Arce passará o comando do país em 8 de novembro para quem for o eleito no segundo turno, em 19 de outubro. Concorrem dois nomes da direita: Tuto Quiroga, um engenheiro liberal que governou brevemente o país no início dos anos 2000, e Rodrigo Paz, um inesperado nome e filho do ex-presidente Jaime Paz Zamora.
Quem é a melhor opção agora para o país? Tuto Quiroga ou Rodrigo Paz?
Nenhum, porque os dois são de direita. Um representa a direita [Paz], mas o outro representa a extrema direita [Quiroga]. Nós sempre vamos acreditar na esquerda; demonstramos isso em medidas de política econômica e social que beneficiaram a população.
Mas essas são as únicas duas opções que os bolivianos têm agora. Qual seria uma transição mais tranquila com o governo?
As políticas que eles apresentaram, que são praticamente as mesmas, não resolvem o problema que estamos enfrentando. O problema não se resolve vindo aqui [nos Estados Unidos] pegar US$ 10 bilhões ou US$ 12 bilhões. Eles estão indo a Washington bater às portas do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, à velha maneira neoliberal.
Nós vivemos 20 anos de neoliberalismo e, nesses anos, a vida dos bolivianos não se resolveu. Quando começou a se resolver? Quando um governo de esquerda assumiu o poder na Bolívia em 2006. Nós, sim, estávamos resolvendo estruturalmente o problema com produção.
Já que falamos do setor da direita, acho que é bom fazer uma avaliação do que aconteceu com a esquerda. O governo termina com um nível de aprovação presidencial muito baixo. O que aconteceu?
A participação ativa de Evo Morales. Desde que chegou da Argentina [onde esteve exilado por um ano, entre 2019 e 2020], Evo Morales começou sua tarefa e sua campanha para ser o candidato em 2025, mas fez isso desacreditando, atacando, caluniando o governo. Ele pensava que, com essa lógica de desgaste ao governo nacional, seria o candidato que todos queriam. Mas se equivocou, e os resultados das eleições mostram que, divididos, perdemos tudo.
Fomos divididos pela ambição de Evo Morales, que sempre quis desde o início ser o candidato, apesar de saber que, constitucionalmente, não podia. Ele negociou com a direita na Assembleia para que não fossem aprovadas leis, especialmente econômicas, o que no final prejudicou não apenas o governo, mas o povo boliviano, que começou a sofrer as consequências do estrangulamento financeiro que a direita fez em um pacto de sangue com o evismo na Assembleia Legislativa Plurinacional.
Nesse sentido, podemos dizer que o populismo e o personalismo foram os grandes males da esquerda?
Evo Morales foi a causa da desintegração da esquerda e da perda das eleições. Evo é um populista. O resto de nós, não. A ambição de uma pessoa é que nos levou a esse problema.
Qual foi o momento específico de sua ruptura com Evo?
Desde o momento em que Evo mentia para os companheiros quando ia às reuniões e nos difamava dizendo que o povo estava “cansado do Lucho”, quando não tínhamos nem um ano de governo. Ele começou a trair o Movimento ao Socialismo [o partido, conhecido como MAS]. Ele começou a trair os princípios da esquerda e da revolução por suas ambições pessoais. Seus apetites venceram o ideológico.
O golpe de 2019 foi por sua ambição de seguir sendo candidato quando já não podia mais. Ele queria repetir o mesmo agora. Por isso começamos a enfrentá-lo, mostrando que era um erro tentar novamente tudo o que ele queria fazer para se recandidatar, quando isso geraria outra vez uma reação por parte da população.
Nós estávamos fazendo o que tínhamos que fazer, propusemos um plano de governo, com foco na industrialização. Estávamos avançando em nossa agenda. Não apenas saímos da crise que a pandemia produziu em nosso país, com políticas próprias, mas já iniciávamos a questão da industrialização. Foi então que recebemos os ataques.
Estavam na mesa da Assembleia, por exemplo, os contratos assinados com duas empresas, uma da China e outra da Rússia, para industrializar o lítio boliviano com investimento de US$ 2 bilhões. Quem estava travando isso? A direita e o “evismo”. Aí esteve o problema. O problema não foram as políticas, não foi o que o Governo Nacional desenhava e fazia. O problema foi que muitas dessas políticas tinham que passar necessariamente pela aprovação da Assembleia, de acordo com a nossa Constituição Política do Estado.
Quando pudemos governar por decretos, o fizemos. Mas, no momento em que vinham os temas estruturais, de grandes investimentos, de pedir a anuência da Assembleia para os créditos internacionais e tudo mais, aí enfrentamos essa oposição.
O governo de Javier Milei na Argentina fez acusações ao seu governo devido à relação próxima com o regime do Irã. O que pode comentar?
A Bolívia tem relações com todos os países. O único país com o qual rompemos relações foi Israel, devido ao genocídio em Gaza. Foi um excesso irresponsável do governo de Milei quando se referiu à Bolívia dizendo que estávamos exportando iranianos. É óbvio que nunca provaram isso.
Não é importante enviar sinais à comunidade internacional com críticas sobre a violação de direitos humanos em alguns países como Irã e Venezuela, por exemplo?
Se quisermos ser corretos, onde está o pronunciamento sobre Gaza? Onde está o pronunciamento sobre vários excessos e violações de direitos humanos em vários países?
Mas muitos países criticaram Israel.
Se vamos querer olhar apenas uma face da moeda, vejamos as duas. E aí vemos um duplo discurso, uma hipocrisia no discurso político: para umas coisas sim, para outras não. Não, não, não. Aqui tem que ser com a mesma régua para todos.
Como está a relação com o Brasil e em que ela precisa avançar?
Estamos talvez no melhor momento da relação com o Brasil. Estamos avançando bastante no cuidado da nossa fronteira, a maior que temos, contra os índices de criminalidade. Também oferecemos ao governo argentino que possa utilizar o gasoduto boliviano para exportar seu gás [das reservas de Vaca Muerta] ao Brasil.
Quando terminar o governo, o que o senhor quer fazer? Onde vamos ver Lucho Arce?
Lucho Arce vai estar onde sempre esteve: na academia, na universidade. Não deixei de dar aulas na universidade mesmo sendo presidente, portanto vou voltar à minha alma mater, que é a academia.
E a política?
Claro que sim. Não vamos abandoná-la. Estou na política desde os meus 14 anos.
Vai tentar construir um novo setor na esquerda?
Temos que continuar o trabalho de unificação. A esquerda não vai desaparecer da Bolívia. Pelo contrário. Isso foi um chacoalhão, e há uma mensagem do povo boliviano que precisa ser entendida. Mas isso não quer dizer que a esquerda desapareceu só porque muitos querem que desapareça. Onde há um pobre, há esquerda.
Quer voltar à política institucional, presidente, seja no Congresso ou na Presidência?
Isso será decidido pelo povo boliviano.
RAIO-X | LUIS ARCE, 62
Nascido na capital, La Paz, e formado em economia, foi ministro da área durante os governos de Evo Morales na Bolívia, quando ficou conhecido como um dos arquitetos do vigor econômico que ganhou o país nos anos de grande exportação de gás natural. Foi eleito presidente em 2020 com 55,2% dos votos.