Como podemos saber quais seriam os valores no século 21? A pergunta é rica em possíveis caminhos reflexivos e, por isso mesmo, muito interessante. Mas suspeito que qualquer reflexão mais consistente sobre esta questão não satisfaria as expectativas mais afeitas ao senso comum no que tange a temas que transitam por ética ou moral.
O sapiens parece tirar bastante prazer da ideia de que ele defina os valores em que acredita. Temo que não funcione assim, apesar de que eu estaria cometendo um pecado capital ao dizer isso. O grande filósofo Kant, no século 18, alimentava uma ideia semelhante, crendo que, uma vez provado que seria racional agir de forma x, agiríamos de forma x. Essa ideia ficou conhecida como imperativo categórico: “aja de forma tal em que sua ação seja erguida em norma universal de comportamento”.
Por exemplo, quando for fazer x, se pergunte se todo mundo poderia fazer x. Se não, não faça x. Busque outro curso de ação em relação ao problema em questão. Apesar da elegância da fórmula, e de reconhecer que seria uma ideia boa para o convívio em grupo, e que de fato ajuda quando viável, não creio que o sapiens seja capaz de agir assim só porque seria racional pensar no todo antes de fazer algo. E digamos de passagem que Kant não estava pensando exatamente em “valores” como hoje se costuma falar em qualquer propaganda de banco.
O senso comum entende que respondemos à pergunta que fiz na abertura dessa coluna acima a partir de uma abordagem pedagógica, isto é, ensinando as pessoas, nossas empresas, nossa família, o que quer que esteja em jogo, os valores certos que devemos ter. Muitos chegam mesmo a propor uma tabela de valores a serem seguidos ou tomados como “nosso DNA ético”. A fórmula chega mesmo ao cúmulo do ridículo, mas o século 21 é o mais ridículo desde o paleolítico superior.
Nesse movimento, normalmente, seguimos na direção de uma pedagogia moral —ou política, o que seria ainda mais canalha estruturalmente— que pregaria valores como integridade, humanidade, honestidade, transparência, generosidade, e por aí vai. A lista é tão bela que faria almas mais sensíveis derramar lágrimas de amor à humanidade e a quem afirma ter tantos valores perfeitos idealmente.
Arrisco dizer que para quem de fato gostaria de pensar acerca dos “valores no século 21”, a melhor abordagem seria um olhar sociológico sobre o que de fato valoramos, ou não atribuímos valor algum, em nosso cotidiano individual, social e político, porque, como sabemos, não existem valores —ou virtudes— teóricos, mas apenas práticos. A ética é, sempre foi, e sempre será, como dizia o grande Aristóteles (384-322 a.C), uma ciência da prática.
Alguém já viu alguém ser corajoso em teoria? Generoso em teoria? Honesto em teoria? Evidentemente que não, a não ser que a pessoa em questão seja um político de carreira.
Um problema a priori que impacta toda reflexão sobre valores é que a hipocrisia é a substância da moral pública. Hoje, talvez, mais do que nunca, porque quase 100% da humanidade sinaliza virtude no Instagram. Valores hoje são objeto do marketing e do branding, ciências sociais aplicadas da mentira como método.
Aliás, o que podemos depreender dessas práticas listadas no parágrafo imediatamente acima? Podemos depreender que a vaidade moral —sinalizar virtude no Instagram— é algo que valoramos muito neste século 21, já que todo mundo reconhece na vaidade moral uma prática que agrega valor a sua marca pessoal ou da sua empresa.
Por outro lado, se as ciências máximas da mentira no século 21, a saber, o marketing e o branding, são aplicadas hoje em todos os níveis da atividade humana, tais como saúde mental, instituições escolares, religião, revoluções políticas, causas sociais e ética, podemos deduzir que um valor no século 21 é a mentira como ferramenta profissional.
Entendeu como proceder para identificar um valor ou desvalor na prática social? Veja o que as pessoas acreditam que agrega valor a elas e, portanto, praticam de fato, e não o que elas dizem que valoram ou negam valor. Em resumo: não importa o que falam, mas o que fazem, aliás, uma ideia que até crianças conhecem, menos os “adultos” do século 21.
Outro exemplo: filhos são um não valor no século 21, porque caso fossem um valor, as pessoas os teriam, mas como não os têm, evidentemente veem a prática de pôr crianças no mundo como um não valor, logo, o valor que decorre dessa prática é não assumir responsabilidade por ninguém. Enfim, resumindo: vaidade moral, mentir e egoísmo são valores no século 21. Ter filhos, não.
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