“Habemus moda.” A temporada primavera-verão 2026 do prêt-à-porter de Milão termina nesta segunda, mas o grand finale foi neste domingo, com o emocionante desfile póstumo de Giorgio Armani, na última coleção em que ele pôs as mãos. Em se tratando do made-in-Italy, da artesania da excelência, pensar nisso confere a essas peças um importante aspecto simbólico, justamente na temporada em que tanto se fala do declínio na percepção de relevância da própria moda e da já tão falada crise generalizada nas vendas do varejo de luxo.
Uma das figuras chave da moda italiana, de fato um revolucionário, Armani morreu aos 91 anos, dia 4 de setembro, deixando um legado para além da moda. Sua derradeira coleção foi mostrada com pompa no grande pátio da Pinacoteca de Brera, que abriga também uma mostra com 120 peças de sua trajetória.
Iluminado por lamparinas em tons de âmbar, o espaço recebeu o pianista Ludovico Einaudi, que tocou ao vivo no desfile, para um time de convidados e celebridades de red carpet, como Cate Blanchett e Richard Gere, em roupas de gala. Armani foi pioneiro em vestir atores para cerimônias, compreendendo a ligação de cinema, moda, glamour e a fabricação de sonhos no imaginário coletivo. O desfile se encerrou com um solitário vestido azul de festa, ovacionado pelo público em pé.
Todos os olhos do mercado estavam voltados para as passarelas italianas, tendo na pauta a estreia de novos nomes na direção criativa de algumas de suas mais importantes casas, como a Gucci. Sobre os ombros desse reduzido elenco de artífices, uma responsabilidade imensa e uma pressão da mesma magnitude. Em movimento, as placas tectônicas da moda se ajeitaram mais uma vez, e a criatividade —palavra até então quase demodê —reinou.
Neste mês de lançamentos, em que se vê o resultado da dança das cadeiras mais expressiva de todos os tempos, um troca-troca nervoso de postos, em busca de novidade e renovação, brilhou quem conseguiu começar a escrever sua história a partir dos códigos de cada marca. A britânica Louise Trotter, justamente a única mulher estreante na temporada italiana, é a bola da vez, com sua estupenda coleção para a Bottega Veneta.
A vaga ficou livre com a saída de Matthieu Blazy —que estreia dia 6 de outubro na Chanel—, na marca que começou a atrair a atenção com o prodigioso Daniel Lee. Trotter vinha de uma trajetória consistente, onde se destacou dirigindo a Lacoste e, depois, de forma mais autoral, a Carven.
Trotter apresentou peças que sugerem uma elegância discreta e um pouco excêntrica. Conjuga uma ideia de suave funcionalidade, como definiu a estilista, com o melhor da manufatura da marca, em especial a partir do “intrecciato”, o trançado de couro que é característico e assinatura da Bottega Veneta há 50 anos. Na pesquisa de materiais, poliéster e fibra de vidro reciclados, na pegada que reverencia as origens no Veneto, que aparecem em suéteres, casacos e saias, de impressionante movimento.
Outro destaque são as elaboradas construções e as proporções alargadas, com ênfase nos ombros e na cintura. Tudo ao som de Nina Simone e David Bowie, em versões sobrepostas da balada “Wild is the Wind”.
Mais estreias e outro sucesso —o estilista italiano Simone Belotti na Jil Sander, fundada pela criadora alemã que deixou seu nome e seu estilo na casa, conhecida por sua silenciosa sofisticação, pelo minimalismo e pela rigorosa pureza formal. A apresentação aconteceu no prédio da marca, em frente ao icônico Castello Sforzesco, e a dualidade entre história e modernismo explodiu.
Belotti enfrenta o essencial vocabulário da Jil Sander enxugando as proporções e os comprimentos das saias, em fendas ou “gilets”, ou seja, cortando a silh ueta, inspirado pelo artista argentino-italiano Lucio Fontana. O excepcional trabalho das cores vem um pouco de Richard Prince, na série “Hoods”, em lindos laranjas e rosas, e o azul, e o vermelho —e o vermelho com azul. Do pastel ao intenso, do prata industrial ao cinza da alfaiataria, tem ainda o branco, o preto nos couros e até um micro floral tecnológico. Os acessórios também agradaram, e Belotti ousou incluir um jeans. Reto, neutro, invisível.
O excepcional trabalho das cores vem um pouco de Richard Prince na série “Hoods”, em lindos laranjas, rosas, azul e vermelho. Do pastel ao intenso, do prata industrial ao cinza da alfaiataria, tem ainda o branco, o preto nos couros e até um floral tecnológico. Os acessórios também agradaram, e Belotti ousou incluir um jeans. Reto, neutro, invisível.
Houve quem se lembrasse dos dias de Raf Simons na Jil Sander, não estivesse o estilista belga brilhando, ele mesmo, ao lado de Miuccia Prada, na Prada, que desfilou também em seus domínios, sobre um chão em laranja chapado, uma aclamada coleção. Aqui se destaca igualmente a ideia da cor, por onde a badalada dupla se exercita, de maneira aparentemente displicente e —falsamente— descomplicada, resultando em uma leveza rara de se atingir.
Nas palavras de Miuccia e Simons, trata-se de um processo de destilação, de filtragem, nesses tempos nossos de sobrecarga de informação. Aqui, de novo, temos o foco no ombro, que segura algo como um vestido-avental que revela cinturas e saias, onde os sutiãs expostos têm forma mas não estrutura. Um show à parte o volume das saias e vestidos, em suas sobreposições, editados com bolsas-saco, luvas e o (des)encontro das cores. Na Prada, nada é o que parece ser.
Ao abrir o desfile com um macacão em estilo minimalista, de uniforme —ao som da delicada “Moments of Love”, hino do Art of Noise—, a Prada trilha um caminho para, de um lado, a dispersão, e de outro a união de elementos cujo mix beira uma imprevisibilidade contemporânea. Justaposições como ato de criação. A moda tem que ser livre.
Liberdade que se permitiu outro estreante, o italiano Dario Vitale, na Versace. Com o peso de ser o primeiro profissional fora da família a assinar o estilo da marca, sucedendo Donatella na casa criada pelo lendário Gianni Versace. Com um forte trabalho de styling, a coleção vem com os dois pés nos anos 1980, na valorização do sexy, para o feminino e para o masculino, com as cores fortes e o pop daquela década.
Na Gucci, a estreia de Demna, no início da semana, misturou realidade, ficção, cinema e moda. Em vez de um desfile propriamente dito, o público assistiu a uma exibição de um filme de 30 minutos, “The Tiger”, tendo Demi Moore como protagonista, dirigido por Spike Jonze e Halina Reijn, de “Babygirl”. O roteiro traz uma —falsa— família Gucci, totalmente disfuncional, num clima meio “White Lotus”. A trilha é do mesmo compositor do seriado de TV, Cristóbal Tapia de Veer.
Demna afirmou que não haveria tempo para que acontecesse um desfile e que ele apenas começa a escrever sua história na marca, que a estreia mesmo vai ser em fevereiro, na próxima temporada. Legendadas como personagens arquetípicos do estilo italiano de vestir, em uma decupagem e celebração dos códigos Gucci batizada de “La Famiglia”, o lookbook acalmou e agradou a indústria nesse começo, ainda que um pouco caricatural.
As modelos e as celebridades, como Moore e Gwyneth Paltrow, por exemplo, chegavam vestindo as roupas do filme e do lookbook, em clima de première e de tapete vermelho. A moda imita a arte que imita a vida que imita a moda. “E la nave va.”