Pouco mais de um mês antes de Donald Trump anunciar guerra tarifária contra o Brasil, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) publicou um vídeo que, de tão impressionante, parece falso, mas cujo conteúdo saiu mesmo da boca do caçula do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
A publicação de 1º de junho exalta o nacionalismo, conclama a “reencontrar o verdadeiro espírito brasileiro” e tem um trecho em que Eduardo elogia três símbolos brasileiros dessa corrente, os ex-presidentes Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart, o Jango, deposto pelos militares no golpe de 64.
“Se queremos nos reencontrar enquanto nação”, diz o deputado, “nós temos que enxergar as figuras históricas do Brasil com um olhar nacional e não partidário”. Vêm então os elogios aos ex-presidentes, todos identificados com o nacional-desenvolvimentismo.
Getúlio foi por anos ditador numa aliança com militares e conservadores e depois se tornou o principal líder trabalhista do país, mesma extração de Jango. JK, eleito pelo centrista PSD, também teve uma trajetória muito mais à esquerda que o direitista radical Bolsonaro e seus filhos.
“Getúlio Vargas, por exemplo, liderou um governo que não teve as liberdades plenas, é verdade, mas é inegável também que houve avanços na nossa indústria, a intenção de valorizar o trabalhador e também investimentos em infraestrutura. Fechar os olhos para isso seria infantil”, afirma o filho 03 do ex-presidente, num discurso aparentemente ensaiado e lido em teleprompter.
“O mesmo vale para Juscelino Kubitschek. Podemos debater os custos e os efeitos econômicos do seu governo. Mas é inegável, houve ali um projeto de integração do país, de otimismo, de progresso. Foram 50 anos em 5. Isso daí marcou o imaginário do Brasil por décadas.”
O elogio a Jango é o menos empolgado, mas não deixa de ser surpreendente. “Não é diferente com o João Goulart. Podemos concordar ou discordar das suas propostas, eu certamente não sou um fã dele. Mas é injusto negar que muitas delas nasciam com a intenção de dar respostas a anseios populares.”
Então se dá outra pérola do discurso: “Assim como falar do período militar: não dá pra dizer que tudo ali foi trevas”. A opinião histórica da família Bolsonaro sobre a ditadura jamais mencionou trevas, pois é o oposto disso. Pai e filhos sempre rejeitaram as evidências quanto às barbaridades cometidas pelos governos militares, classificando o período como uma época de ouro do país.
“Até houve autoritarismo”, concede o deputado, “mas ali existiram investimentos em infraestrutura que sustentam o Brasil até hoje. E é papel de uma nação madura olhar pro passado e conseguir perceber tudo aquilo que deu certo, tudo aquilo que foi positivo na nossa história”.
Eduardo faz uma pregação que soa delirante diante das atitudes bélicas que marcam a trajetória dele e de seu pai, e é mais estapafúrdia ainda pelo contraste com sua incitação a Trump para retaliar o governo federal e o STF (Supremo Tribunal Federal) por causa do julgamento de Bolsonaro na corte.
“Negar as virtudes de qualquer período da nossa história é negar a nós mesmos. Não há união nacional possível se cada um dos lados quiser apagar o outro. O Brasil precisa de reconciliação, não de ressentimento”, monologa.
E engrena um discurso de candidato. “Eu me apresento como alguém disposto a ajudar o país a se reencontrar, […] a levantar a cabeça e acreditar em si mesmo. Quero me reencontrar com o espírito brasileiro, com a coragem de quem construiu esse país em meio a tanta adversidade. […] E quero caminhar lado a lado com todos que também acreditam nisso.”
Conforme mostrou a Folha, Eduardo está disposto a se lançar candidato à Presidência em 2026 mesmo sem o apoio do pai —isso caso até lá não seja preso ou impedido pela Justiça. Para líderes do centrão, seria uma estratégia para herdar os votos de Jair, mesmo que o ex-presidente apoie o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).
O discurso do vídeo de junho parece ser um cartão de visitas nesse sentido, ainda que o insólito rumo indicado ali imponha uma questão: como foi possível essa guinada?
Dias antes de Eduardo publicar o vídeo, o ex-ministro Aldo Rebelo (governos Lula 2 e Dilma, integrante histórico da esquerda que nos últimos anos se aproximou do velho colega de Câmara Jair Bolsonaro e do bolsonarismo de modo mais amplo) participou de uma live do canal Estúdio 5º Elemento –Eduardo também já havia ido em outras oportunidades.
Um dos motes da conversa era “Soberania traída? Direita sem povo e governo a serviço dos bancos: o Brasil tem saída?”.
“Procurei fazer uma ponte do nacionalismo com os liberais, mostrando que Getúlio fez uma revolução com a chamada Aliança Liberal, que liberalismo e nacionalismo juntos não são estranhos no Brasil”, resume Aldo.
Também participou da live o youtuber Kim Paim, ligado a setores bolsonarismo. O tema do vídeo de Eduardo, relata Paim, permeou conversas anteriores entre ele, integrantes do 5º Elemento e o filho de Bolsonaro.
“[Nós dissemos:] E se a história do Brasil não for realmente como contam? E fomos mandando material. E se o Vargas não for o grande vilão? Quem venceu essa batalha ao final foi a turma do centrão que está aí até hoje. O Eduardo começou a se questionar. Outra vez falei pra ele: você já parou pra ler o discurso do Jango do 13 de março? [em comício na Central do Brasil, apontado como estímulo para o golpe] Será que o Jango realmente falou que ia dar um golpe?”, conta Paim, que rejeita a pecha de bolsonarista.
“As pessoas me veem como passador de pano do Bolsonaro, mas me acho uma das pessoas mais distantes do bolsonarismo mainstream. Sou crítico do lava-jatismo antes de ser moda. Gosto do Jair. Em questões morais, me considero conservador. Nas econômicas, tenho simpatia pelo nacional-desenvolvimentismo.”
Paim, que diz ter adorado o vídeo de Eduardo, considera ser possível uma aliança com setores tidos como adversários, porque “nem todo mundo na esquerda tem a mesma agenda”. “Já falei com o próprio Eduardo e com o Aldo. [Disse]: Aldo, o que vocês na esquerda cresceram chamando de imperialismo, essa direita que tem aí chama de globalismo. No frigir dos ovos é a mesma coisa. Já para Eduardo eu falo: o que tu aprendeu como globalismo a esquerda chama de imperialismo. Tem que conversar.”
O youtuber defende que Eduardo se lance candidato a presidente “só por se lançar”. “Ganhar ou perder, tanto faz. Hoje eu não acho que tem solução a partir de 2026. Eu colocaria meu barquinho na água pra montar um grupo verdadeiramente coeso.”
Quanto à contradição de Eduardo em adotar um discurso nacionalista e atuar junto aos EUA contra o Brasil, ele afirma que, “daqui a cinco anos, talvez ele nem precisa explicar. [Poderá dizer que] fez o que tinha que ser feito porque era um filho tentando proteger o pai. […] Uma guinada nacionalista não vem do dia pra noite. É um processo, uma luta”.
Paim arremata com o recado que passou a Eduardo e outros bolsonaristas: “Vocês têm voto, mas não têm um projeto de país. Tem que trazer para perto quem tem [um projeto]. Se sentar e organizar, a coisa vai pra frente”.
O advogado Fabio Wajngarten, que foi secretário de Comunicação do governo Bolsonaro, também fez contato com Kim Paim, ao mesmo tempo em que procurou Aldo Rebelo e outras figuras tradicionalmente alinhadas à esquerda nacionalista, como Ciro Gomes, Roberto Mangabeira Unger e Roberto Requião, em busca de uma aproximação.
Hoje no MDB, o ex-ministro pelo PC do B considera que Paim e os integrantes do 5º Elemento convenceram Eduardo a gravar o vídeo, mas admite que suas próprias ideias estão ali. Um exemplo: Aldo está escrevendo um livro sobre Dom Pedro 1º, “Um Herói Necessário”, cuja intenção é “recuperá-lo como um dos mitos fundadores do Brasil”.
Em lives e palestras, afirma que, se for ressaltar apenas o lado negativo, Dom Pedro será lembrado “como um mulherengo, e não como um estadista”. Paim mandou um desses vídeos para o caçula de Bolsonaro.
Em seu próprio vídeo, Eduardo afirma: “Se olharmos apenas para o lado ruim, a gente vai reduzir um Dom Pedro 1º a um homem mulherengo. Mas ele foi muito mais do que isso. Foi um estadista que no momento de ruptura global conseguiu manter a unidade territorial de um país de dimensões continentais, onde todos falam uma só língua e se reconhecem como um só povo”.
Aldo Rebelo chegou a enviar uma mensagem a Bolsonaro (antes de ele ser preso) brincando que cobraria direitos autorais do caçula dele. O ex-presidente respondeu com risos.
A reportagem pediu uma entrevista a Wajngarten, mas não teve resposta. Também enviou via o ex-secretário, que costuma intermediar contatos entre os Bolsonaro e a imprensa, perguntas para Eduardo –que ficaram igualmente sem retorno.