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Ismael Nery: Exposição mostra a dualidade de sua obra – 28/09/2025 – Ilustrada

Um conjunto de desenhos e pinturas sobre o cotidiano brasileiro da década de 1920 apresenta a realidade de modo solar, com a observação da vida na cidade, das pessoas e de outros aspectos triviais do dia a dia. Algo que poderia parecer comum contrasta e compõe com o outro lado da exposição —obras oníricas, onde o sonho e a morte permeiam a construção dos trabalhos; retratos soturnos, com olhares vazios e corpos cadavéricos.

Esta dualidade dá forma à mostra “Crônica e Sonho”, do artista paraense Ismael Nery, morto aos 33 anos, que pode ser vista na galeria Danielian, em São Paulo. A curadoria é de Tadeu Chiarelli, crítico e professor aposentado de artes visuais da USP, que buscou apresentar essas duas faces do trabalho do artista.

Chiarelli percebeu, ao revisar o conjunto da obra de Nery, que muitas produções classificadas como surrealistas tinham, na verdade, origem no simbolismo. Segundo ele, o artista unia a observação da realidade, filtrada pela tradição artística, com temas como sonho e morte, tratados com grande liberdade. O surrealismo, nesse caso, não foi o ponto de partida, mas apenas uma força que intensificou questões já presentes em Nery, o que o torna, na visão do curador, mais simbolista do que se imaginava.

O simbolismo, movimento artístico do final do século 19, valorizava sonhos, sentimentos e estados de espírito, abordando temas como morte, decadência e espiritualidade. Já o surrealismo, escola do início do século 20, buscava explorar o inconsciente, os sonhos e a imaginação, indo além da lógica e da razão.

Nos trabalhos de Nery, a influência do simbolismo se manifesta na tensão entre o cotidiano e o universo interior, dando profundidade às suas obras. Para Chiarelli, é desse substrato simbolista que o surrealismo se apropria, mas Nery já partia dessas questões de forma natural.

Entre os trabalhos em exibição, há desenhos de pessoas e cenas urbanas que lembram pequenas crônicas visuais, com atenção à vida cotidiana, à cidade e às relações sociais.

Em contraponto, obras de caráter onírico mostram corpos e figuras com olhos vazados ou fechados, bocas em posições inesperadas e outros detalhes que remetem ao automatismo psíquico —técnica associada ao surrealismo. Para o curador, o modo como Nery se apropria do surrealismo se dá de modo muito pessoal, criando imagens que flutuam entre sonho e realidade.

A exposição também evidencia a relação íntima do artista com Adalgisa Nery, retratada em alguns trabalhos sozinha, enquanto em outros ele combina traços próprios com os dela, criando figuras andróginas que sugerem um intercâmbio de identidade e gênero. Para Chiarelli, essa sensibilidade pode ser lida hoje como um traço queer: “A androginia estava presente no simbolismo decadente europeu, e ele a incorporou de maneira sofisticada, misturando perversidade e negação da beleza idealizada”.

Entre as curiosidades contadas pelo curador, Nery é descrito por Chiarelli como um artista com hábitos inusitados —ele deixava muitos desenhos de lado, jogava no lixo, e Murilo Mendes, amigo e poeta, pegava, passava a ferro os papeis e os guardava. Para o crítico, não fosse o empenho do amigo, a maior parte dos desenhos teria se perdido.

Além disso, o artista também viajava com frequência e dizia acreditar que a pintura já havia atingido o seu fim com o pintor renascentista Tintoretto. Chiarelli conta que a primeira vez que Nery viu as obras do artista, entendeu que aquilo era o auge da pintura e, em vez de isso atrapalhar sua produção, foi libertador.

Chiarelli relembra ainda o talento físico e social de Nery, que era atleta, remador, bailarino, poeta, pintor, e, segundo relatos da época, também formava um casal de forte presença com Adalgisa. De acordo com o curador, ele recebia visitas de jovens artistas e intelectuais no Rio de Janeiro, falava muito bem sobre arte, mas tinha poucos livros em casa. “Adalgisa dizia que quando ele queria aprender algo, procurava um especialista e absorvia o conhecimento em vez de ler sobre o assunto”, conta.

No entanto, apesar da relevância, Nery permaneceu relativamente desconhecido fora do Brasil. Somente na década de 1960 ele começou a ser redescoberto, quando exposições na Bienal de São Paulo apresentaram seu trabalho a novas gerações de críticos e colecionadores.

Hoje, Chiarelli defende uma leitura mais ampla. “Se tirarmos Nery da prisão do surrealismo, percebemos sua potência maior: ele é um artista total, com produção literária, poética e pictórica, que dialoga com a modernidade sem se submeter às convenções de um projeto nacionalista positivo.”

Para o curador, a importância da nova perspectiva sobre o trabalho do artista está justamente na experiência direta com as obras: o contato com cada desenho e pintura vai suscitando novas interpretações e questões no espectador.

“Essa compreensão entre o real e o surreal está em processo, e é justamente isso que considero muito positivo —as coisas caminham, se transformam, e o olhar sobre o artista se renova a cada aproximação”, afirma.

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