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A morte trágica de imigrantes da Bessarábia no Brasil – 28/09/2025 – Ilustríssima

[RESUMO] Descendente de imigrantes da antiga Bessarábia —território hoje ocupado por Moldávia, Ucrânia e Romênia—, autor relembra a chegada dos primeiros deles ao Brasil, em 1926. Revoltados com o trabalho forçado em fazendas, muitos ficaram presos em ilha de São Paulo, onde crianças acabaram envenenadas por um tipo de mandioca. Hoje esses bessarabianos buscam resgatar a identidade perdida, assombrados agora pela guerra desencadeada pela Rússia em suas terras de origem.

“Está vendo aquela pessoa ali no outro lado da rua? Me virei e vi uma mulher de uns 70 anos. Um lenço de cor esmaecida cobria-lhe a cabeça. A blusa e a saia eram de tecido grosso, pesado e escuro.”

“Sim, por quê?”, perguntei ao senhor que me apontava a mulher.

“Porque ela comeu o marido!”

“O quê?”, reagi incrédulo, enquanto a senhora comilona entrava tranquilamente numa casa.

“Isso mesmo! Ela deglutiu partes do esposo nos anos de fome da Segunda Guerra Mundial“, ele me explicou. “É verdade, acredite em mim. Assou e comeu. O marido havia morrido um pouco antes. Desnutrição aguda, disseram. Com a vitória dos comunistas, a mulher foi denunciada, julgada e condenada. Teve que cumprir pena, mas sobreviveu. Naquela época, as pessoas saíam procurando comida pelas ruas até cair. Muitos morriam pelo caminho.”

O senhor de colete de couro de carneiro era cunhado da minha “baba” (avó). Não me lembro o nome dele. Diferentemente da história, que se quer documental, a memória atualiza a disposição dos afetos. Memória é acolhimento. História é versão. Ou distorção.

Tinha 22 anos quando voei para além da Cortina de Ferro. Era a primavera de 1983 na República Socialista Soviética da Ucrânia. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas só iria desaparecer oito anos depois. O Brasil ainda vivia sob ditadura, e as pessoas me diziam que na volta seria interrogado ou coisa pior. Mas tinha que saber como era a terra dos meus avós, que chegaram da Bessarábia (onde hoje é a Moldávia e partes da Ucrânia e da Romênia) em 1926. Lá estão enterradas minhas raízes, pensava.

Embarquei com meu “diado” (avô) para Frankfurt e de lá fizemos conexão para Bucareste. Fomos de carro a Galatsi, na fronteira da Romênia com a União Soviética. Atravessamos o rio Danúbio de barco até Izmail. Parentes nos conduziram a Vinogorodnoe (antiga Gassan-Batar), uma aldeia da Bessarábia.

Chegamos na Páscoa Ortodoxa. Nas casas havia festa e comilança. Mesas postas nos quintais, cobertas por travessas com assados de cabrito, cumbucas de gelatina de peixe, feixes de cebolinha, garrafas de vinho e vodca, cestos com ovos coloridos, cerejas, sementes de girassol. Todo mundo cantava e dançava. Homens beijavam na boca, a mim e ao meu “diado”, como era o costume no reencontro e na despedida. Não sei se tanta alegria era pela ressurreição de Cristo ou pela volta do filho pródigo. Me senti no paraíso socialista.

Hoje, mais de 40 anos depois, percebo que a luta identitária e a busca por reconhecimento, tão fortes na América Latina massacrada pelo colonialismo, também estão presentes nos descendentes daquele povo que para cá imigraram. Apesar do privilégio branco, passaram o diabo na mão das elites locais, subordinadas à ordem capitalista e à divisão internacional do trabalho.

Agora que os longos tentáculos da Bessarábia voltam a me alcançar, é hora de contar uma ou duas coisas sobre uma imigração que há cem anos sofreu um trauma do qual não se recuperou até hoje.

Estou de olho em você

Corta para 8 março de 2022, dia de luta das mulheres. Em qualquer lugar elas são a maior minoria e todos nós precisamos brigar contra o sexismo, o machismo e o patriarcado. Mas há outras lutas no mercado, que correm paralelamente. Naquele dia recebi uma mensagem urgente de Moscou. Veio em inglês por uma rede social norte-americana. Eis a tradução:

“Olá, Eduardo, por favor, me diga se eu e minha família (Natasha e minha filha Polina) decidirmos ir para o Brasil, podemos contar com sua ajuda. Não queremos incomodá-lo, mas estamos muito preocupados com o que está acontecendo e prontos para correr riscos. Como não vemos perspectivas aqui, planejamos negociar criptomoedas pela primeira vez, temos quase toda a experiência financeira e de negociação e a levaremos conosco. Acho que temos pouco tempo para sair do país, podemos não ser liberados. Os aviões não voam e precisamos de um visto para a Europa, que ninguém nos dará. A Europa está fechada para nós. Precisamos da internet e de ajuda para conseguir um cartão bancário. Nossos cartões não serão válidos. Visa e Mastercard pararam de aceitar cartões fabricados na Rússia. Não temos muito tempo, talvez alguns dias, para decidir o que fazer. O Instagram deve ser bloqueado hoje, o Facebook está bloqueado há muito tempo. Mas às vezes eu entro no computador do meu irmão, que mora na Moldávia. Então, ainda não sei o que fazer e o que acontecerá em seguida”.

Era Andrey Popovich, meu primo distante por parte de avó, alguns dias depois da invasão da Ucrânia pela Rússia. Seis anos antes, ele e Natasha haviam me visitado em São Paulo. Trouxeram um adesivo de geladeira bem-humorado: Putin apontava o dedo e dizia “estou de olho em você”.

Andrey trabalhava como auditor da Federação Russa e morava em Moscou, “a três estações de metrô da Praça Vermelha”, me dissera sem disfarçar o orgulho. Em 2022, ele queria fugir da guerra de Putin. Em idade militar, enfrentar o Ocidente não estava em seus planos. Andrey, Natasha e Polina não conseguiram sair do país. Hoje moram em São Petersburgo.

Conheci os pais de Andrey na cidade de Bender, na Moldávia, na viagem de 1983. Aquela região, de maioria russófona, se rebelou contra a Moldávia em 1990 e se declarou independente. Espremido entre duas nações, o novo Estado se chama Transnístria, mas não é reconhecido internacionalmente. “Não posso visitar meus pais de carro, ônibus ou trem. A Ucrânia e a Moldávia não deixam ninguém entrar lá”, reclama meu primo.

Tanya, tia de Andrey, mora em Odessa (Ucrânia), uma das frentes da guerra. “Ela viu do apartamento o clarão de navios explodindo à noite no porto”, conta Andrey, para quem “essa situação belicosa vinha se formando há muito tempo”.

Ele explicou naquele início: “Acho que uma guerra era inevitável. A autoconfiança de ambas as partes, infelizmente, leva a situações em que todos se consideram certos. É uma tragédia, claro, mas, no contexto histórico, nada de novo —esse território sempre foi um lugar de interesses diversos”.

Tanya está feliz com a aproximação da Rússia. Segundo Andrey, “os búlgaros não têm nada a ver com a Ucrânia”. “Eles também são oprimidos. Acho que tudo será rápido, em poucos dias. Mas ainda sofreremos por muito tempo os ecos do colapso do Império Russo e da União Soviética.”

Andrey estava errado. O conflito se transformou em uma guerra de atrito, em que cada palmo de terra é disputado sob um céu coalhado de drones assassinos. Já dura mais de três anos.

Tanya tem dois filhos. Um mora em Praga, repete o discurso ocidental, é a favor da Ucrânia. O outro sobrevive em Kherson (Ucrânia), às margens do rio Dnieper, front da guerra, é a favor da Rússia. Tanya fica dividida, mas é falante de russo e ama Putin.

Já meu primo por parte de avô, Phillip Rashkov, mora em Izmail, na Ucrânia. Em 2020, veio passar o Carnaval no Brasil. Atuando na área de odontologia desde antes da queda da União Soviética, ele parecia um próspero profissional liberal.

Tudo mudou com a invasão russa. Ele não acreditou nas promessas de vitória de Volodimir Zelenski, presidente ucraniano, e resolveu fugir para a Bulgária. Atualmente, vive em uma casa de veraneio em Varna, balneário do Mar Negro.

Izmail, a bela cidade às margens do rio Danúbio pela qual entrei na União Soviética, há 42 anos, tem sido bombardeada por mísseis russos por ser um porto fluvial por onde chegam armas ocidentais.

Andrey, Tanya e Phillip são búlgaros étnicos, estão em lados diferentes da guerra, mas não se sentem inimigos. Há 300 anos, levas de búlgaros fugiram dos turcos e se instalaram nas terras férteis da Bessarábia sob a proteção da czarina Catarina 2ª. Esse território hoje pertence à Ucrânia.

Há cem anos, descendentes deles resolveram abandonar essas terras porque eram perseguidos. Em 1926 chegaram ao Brasil mais de 10 mil imigrantes com passaporte romeno vindos do antigo oblast [região administrativa, com governança própria] russo. A maioria era de origem búlgara, mas havia também gagaúzes [povo proveniente da região da Gagaúzia, na atual Moldávia, e do sudoeste da Ucrânia].

A região havia sido dominada pelos romenos em 1918, quando se aproveitaram da debilidade provocada pela Revolução Bolchevique. Foram esses búlgaros bessarabianos, nascidos sob o Império Russo, que vieram ao Brasil com passaporte romeno. Daí a confusão. Afinal, eram russos, búlgaros ou romenos?

Cruz ortodoxa

Em maio de 1996, 80 fotos foram expostas no Museu da Imigração para comemorar os 70 anos da entrada bessarabiana no Brasil. A mostra virou um espaço de acolhimento para uma comunidade pulverizada e esquecida, invisibilizada pelo fluxo implacável da historiografia oficial.

Eram pessoas dispersas e cheias de dúvidas sobre as histórias que ouviam de seus pais. Careciam de informação e reconhecimento, mas a memória aflorava e com ela suas mágoas, dores e alegrias.

Jorge Cocicov, filho de bessarabianos que teve papel central na reagrupação desses descendentes, notou a recorrência de uma história mal contada. Todos falavam dela, embora fosse um assunto silenciado pelos avós, que a comentavam em sussurros, entre eles e na língua deles. Era talvez a história mais triste já relatada por imigrantes no Brasil: a tragédia da Ilha dos Porcos.

É preciso recuar no tempo para entender o que aconteceu. Em 1893, no começo da República, foi promulgado um decreto que autorizava o governo a fundar umacolônia militar correccional” onde deveriam ser recolhidos “vadios, vagabundos e capoeiras que forem encontrados”. A ideia era discipliná-los por meio do trabalho agrícola, fabril ou artesanal.

É fácil imaginar quais foram as principais vítimas. Basta lembrar que apenas cinco anos antes havia sido assinada a Lei Áurea, que “libertava” os escravizados. A população negra foi deixada ao deus-dará porque a ideia era substituí-la pelos imigrantes europeus.

Em 1908 foi inaugurada a Colônia Correcional do Porto das Palmas, na Ilha dos Porcos, a 8 quilômetros do Saco da Ribeira, em Ubatuba (SP). Projetada pelo escritório de Ramos de Azevedo, ela teve como modelo a Colônia Agrícola e Penitenciária de Mettray, na França, de 1838, marco do controle e da disciplina, analisada por Michel Foucault no livro “Vigiar e Punir”.

Dez anos depois essa prisão seria fechada; foi reaberta apenas em 1928. Nos anos 1930, receberia presos políticos no governo de Getúlio Vargas; na Segunda Guerra Mundial, virou campo de concentração para aprisionar japoneses.

Em 1952 houve uma grande rebelião que resultou em 118 mortos e no fechamento do presídio. Dois anos depois, o local passou a se chamar Ilha Anchieta. Hoje é uma área de proteção ambiental, um parque estadual e atração turística.

Mas em 1926 os prédios ainda estavam abandonados e apenas alguns caiçaras moravam na Ilha dos Porcos. Quando bessarabianos alojados na Hospedaria do Imigrante se negaram a ir com os capatazes para as fazendas, surgiu o problema do que fazer com aqueles estrangeiros.

Eles se recusavam a cumprir o contrato porque ouviram de um conterrâneo, que fugira de uma das fazendas, que haviam sido enganados e seriam submetidos ao que hoje chamamos de “condições análogas à escravidão”.

Era uma época agitada, em que os problemas se resolviam pelas vias de fato. Dois anos antes, houvera as revoltas tenentistas e o país estava em estado de sítio devido à Coluna Prestes.

Nesse contexto, 2.000 bessarabianos foram forçados a entrar em um trem e levados ao porto de Santos. De lá, de barco, os amotinados acabaram largados na Ilha dos Porcos. Os últimos caiçaras haviam acabado de ser retirados de lá.

Os búlgaros bessarabianos foram orientados a ocupar as dependências do presídio desativado até que resolvessem cumprir os contratos ou arrumassem um jeito de voltar para suas terras. Cansados, deixados à própria sorte na Ilha dos Porcos, dormiram no chão das celas abandonadas do presídio.

Nos primeiros dias faltava comida. O jeito foi apelar para a plantação de mandioca deixada pelos caiçaras. Colheram e prepararam uma papa, como imaginaram que os brasileiros faziam. O que os bessarabianos não sabiam é que aquela raiz era selvagem.

A mandioca-brava contém ácido cianídrico que pode matar. Os bessarabianos não conheciam a técnica desenvolvida pelos indígenas para torná-la digerível. Não havia autoridade brasileira, eles estavam entregues a si mesmos numa ilha inóspita.

Resultado: após ingerirem a papa de mandioca-brava, imediatamente começaram a passar mal. Era uma papinha da morte. O primeiro falecimento foi em 18 de abril de 1926. Nos dias seguintes morreram 150 imigrantes, sendo 143 crianças, a maioria envenenada pelo ácido cianídrico.

Essa é uma tragédia da qual os búlgaros bessarabianos nunca se recuperaram. Cocicov ouviu tantas histórias narradas pelos descendentes dos sobreviventes da Ilha dos Porcos que resolveu escrever sobre elas.

Procurou notícias nos jornais da época, mas não encontrou nada. Informavam sobre a rebelião dos bessarabianos e o transporte deles para a reclusão na ilha, mas nada sobre a morte das crianças. Seria uma lenda?

Até que procurou os atestados de óbito das 151 vítimas. Encontrou-os no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, sede da Comarca de Ubatuba. Ele conta essa história na página 91 do livro “Imigração no Brasil – Búlgaros e Gagaúzos Bessarabianos” (2005):

“A falta de pronta assistência médica e internação hospitalar foi desastrosa para a administração pública que, até hoje, deve continuar carregando o fardo pesado de uma culpa ignominiosa ao tratar tão negligentemente da custódia de seres humanos colocados sob a sua responsabilidade. O médico Dr. Boanerges Pimenta havia sido recentemente nomeado e as mortes vinham ocorrendo desde o dia 18 do mês anterior [abril]. Atente-se, por outro lado, que os óbitos foram levados a registro muitos meses depois, exatamente no dia 1º de agosto de 1926, por declaração do então zelador da ilha Luiz Passos Júnior e atestados por aquele médico, registros esses feitos em batelada, isto é, aos montes, que atingiram 156 termos de óbito, em inusitada sequência. Dos 2 mil imigrantes, entre 18 de abril e 25 de julho de 1926, morreram 151 pessoas, entre crianças e adultos —era tanta gente morta que ‘até formaram cemitério’, segundo Ana Dimov, que à época contava 10 anos. Os que sobreviveram logo depois foram devolvidos ao continente e muitos foram abandonados à própria sorte.”

Essa história poderia ter ficado no esquecimento completo não fosse a atuação do médico Boanerges Pimenta, que, mesmo tendo chegado depois da maioria das mortes, fez questão de assinar os atestados de óbito.

Ele descreveu como “causa mortis” não apenas o envenenamento por mandioca, como relataram os bessarabianos, mas também vários outros fatores, como “debilidade congênita”, “inviabilidade”, “disenteria”, “morte natural por causa indeterminada”, “morte natural sem assistência médica”.

Restava achar o cemitério mencionado por Ana Dimov. Não era a necrópole oficial da ilha, onde estavam enterrados caiçaras, presidiários e militares que lá serviram, mas um campo santo clandestino, longe das ruínas do presídio e das instalações erguidas posteriormente.

Cocicov não descansou enquanto não o localizou. As ossadas estavam em covas rasas, a maioria de corpos de pequenas dimensões. Não havia dúvidas, ali estavam enterradas as crianças envenenadas em abril de 1926. Cocicov salpicou o campo santo de cruzes ortodoxas, aquelas que têm não uma, mas três barras transversais.

Os descendentes dos sobreviventes da tragédia da Ilha dos Porcos, e de outros povos que chegaram antes ou depois, estão por aí em busca de uma identidade perdida no tempo e no espaço. No ano que vem se comemora o centenário da chegada dos bessarabianos ao Brasil, encerrando a era das grandes imigrações.

Hoje eles tentam reatar laços com suas origens, mas encontram o território de seus parentes ardendo numa guerra fratricida. Acompanham com ansiedade as peripécias das negociações de Putin, Trump, Zelenski , Otan e União Europeia pela paz. De alguma forma, sentem-se parte da trama de sangue urdida na terra de seus ancestrais.

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