Não fosse pela delação premiada de Mauro Cid não teríamos tomado conhecimento do plano e das ações associadas a um possível golpe de estado no país. O golpe foi abortado endogenamente. As instituições aos quais associamos a defesa da democracia não cumpriram nenhum papel direto no controle dessas ações. A sobrevivência da democracia não decorreu diretamente de suas ações.
A qualificação “direta” e “diretamente” nas sentenças anteriores é crítica.
A ideia de resistência frente a processos de retrocesso ou erosão da democracia não se aplica, portanto, ao plano abortado. Não há aparentemente registro de nada semelhante na literatura sobre o que se vem denominando democratic backsliding. Este tem lugar tipicamente através de ações cumulativas em uma zona cinzenta de legalidade ou violação aberta das regras institucionais por incumbentes.
A situação é distinta no caso em que o TSE atuou em relação a iniciativas do presidente e de seu partido no sentido de deslegitimar o processo eleitoral e que resultaram em inabilitação eleitoral e multas inéditas.
Ou quando o STF sustou medidas do Executivo. A ideia de resistência e controle pressupõe assim contemporaneidade de ação e reação a abusos. A força das instituições se revela na simultaneidade.
O mesmo vale em alguma medida para punições. A punição ex post de governantes quando estes já não exercem poder é forma fraca de responsabilização; o controle concomitante é sua forma robusta. Obviamente as punições mesmo ex post tem impacto sobre a estrutura de incentivos. E por isso importam.
Afirmar que o golpe foi abortado endogenamente não significa que foi produto de decisões individuais de generais. Ou que foi por um triz.
Fatores de ordem institucional, social e estratégica são determinantes: um presidente hiperminoritário nas duas casas foi contido por um Legislativo forte e Poder Judiciário autônomo (independentemente do juízo que se possa fazer em relação as suas ações); não por indivíduos. E militares razoavelmente profissionalizados em um quadro em que não há riscos geopolíticos críveis, associados à Guerra Fria, como no passado.
A isso se soma uma sociedade civil complexa e elites empresariais e políticas majoritariamente contrárias à fratura da ordem política.
O julgamento ilumina o papel dos atores individuais servindo para responsabilizações penais, mas tem pouca valia para a análise comparativa da sobrevivência da democracia no país. Decisões tomadas por um ator adquirem sentido em função do contexto. Por exemplo, em países pobres com instituições fracas, sem experiência democrática, e sociedade civil débil, elas têm significado inteiramente distinto onde estes parâmetros são outros, como no Brasil. O cálculo estratégico dos atores reflete indiretamente o contexto.
Como já argumentei na coluna, se a não adesão individual a um golpe se deve ao risco envolvido; a sua baixa probabilidade de sucesso e, portanto, temor de punição futura; ou a preferências normativas pela democracia de alguns atores-chave; o não evento (a morte da democracia) é o resultado que interessa. E mais: a não consumação da aventura não implica que teria sido exitosa.
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