Os talk shows noturnos nem sempre foram a ponta de lança. Durante a maior parte de sua história, esse gênero tipicamente americano apresentava ao público homens educados do Meio-Oeste vestindo ternos que embalavam os telespectadores para dormir com piadas apolíticas e conversas com celebridades.
Os comediantes que geravam controvérsia ao abordar questões polêmicas eram stand-ups como Lenny Bruce, George Carlin ou Dave Chappelle. Mas os contadores de piadas que emergiram como os críticos de maior destaque do segundo governo Trump —e os mais atacados— são aquela espécie supostamente em extinção: os apresentadores de talk shows noturnos da TV aberta. Como essas figuras do establishment se tornaram tão políticas?
Conservadores argumentam que os apresentadores noturnos da TV aberta ficaram isolados em sua própria bolha liberal, e sua mudança para críticas mais abertas ao presidente Donald Trump foi motivada por política, não por interesses comerciais. Outros apontam para Trump, que tem o toque de Midas para politizar tudo o que toca. Nenhuma explicação está totalmente correta.
Para entender como os apresentadores de talk shows noturnos se tornaram críticos de Trump, é preciso ter uma visão de longo prazo, porque seus comentários cada vez mais políticos precederam o atual presidente e aconteceram gradualmente.
Pode-se traçar essa evolução de forma bastante clara ao longo da carreira de Jimmy Kimmel, que passou do humor de fraternidade de “The Man Show” no início dos anos 2000, para se tornar o improvável rosto da resistência, defendendo sinceramente a liberdade de expressão e a independência jornalística em seu retorno à televisão na terça-feira (23) à noite, depois da Disney suspender seu programa na ABC, “Jimmy Kimmel Live!”, sob pressão do governo Trump.
A influência mais importante sobre Kimmel sempre foi seu herói de infância, David Letterman (“meu Jesus”, ele uma vez chamou a estrela mais velha), e algumas de suas ações agora refletem a irreverência instintiva em relação à autoridade que o “Late Night With David Letterman” regularmente exibia nos anos 1980.
Mas buscar o momento de conversão de Kimmel só o levará até certo ponto. A mudança política da televisão noturna —e de Kimmel— começou com o programa influente que seguiu “The Man Show” na Comedy Central: “The Daily Show With Jon Stewart“.
Claro, já havia comédia política popular na programação noturna antes de Stewart —desde episódios polêmicos de “The Dick Cavett Show” nos anos 1960 e 70 até o “Politically Incorrect” de Bill Maher nos anos 90 (que foi transmitido pela ABC e foi substituído por, adivinhe só, “Jimmy Kimmel Live!”). Mas o sucesso de Stewart deu origem a um gênero inteiramente novo de comédia justiceira. Ele não apenas comentava as notícias. Para muitos, ele fornecia uma fonte alternativa de notícias.
Stewart zombava implacavelmente do governo Bush durante os preparativos para a Guerra no Iraque, mas era igualmente mordaz e persistente ao ridicularizar a superficialidade da cobertura da mídia. Há uma linha direta do sucesso de Stewart em se conectar com seus espectadores ao zombar com desprezo da mídia política para o que Joe Rogan faz em seu podcast antes de entreter teorias alternativas sobre vacinas ou a Segunda Guerra Mundial.
Stewart cultivou uma equipe de correspondentes —John Oliver, Samantha Bee, Stephen Colbert, entre outros— que se tornou uma importante fonte de futuros apresentadores de talk shows. Stewart consistentemente vencia Conan O’Brien no Emmy Awards, o que, em retrospecto, demonstrava certo viés em favor da ideia equivocada de que a comédia política é o tipo mais ambicioso.
Mas a principal razão pela qual Stewart mudou a programação noturna é simplesmente que seu programa atraía audiências, especialmente jovens. Começou-se a ver apresentadores como Letterman se tornavam mais francos em suas posições políticas, não apenas confrontando uma candidata a vice-presidente, Sarah Palin, mas também convidando regularmente um empresário sem filtro chamado Donald Trump para desabafar sobre as notícias do dia.
Quando Letterman se aposentou, a CBS o substituiu por Colbert, que teve um início difícil, mas encontrou seu caminho após a eleição de 2016, quando começou a fazer comentários mais apaixonados sobre as notícias. Ele eventualmente fez o que Letterman não conseguiu: superar “The Tonight Show” na audiência ano após ano. Ser o líder de audiência, no entanto, não impediu que o programa de Colbert perdesse dinheiro ou fosse cancelado.
Deixando de lado as considerações políticas, o modelo econômico para talk shows entrou em colapso pelo mesmo motivo que o da mídia impressa: a internet. As taxas de publicidade despencaram. As redes sociais faziam piadas sobre temas atuais antes dos programas noturnos. E a crescente fragmentação da cultura mudou o cálculo do que repercutiria.
Johnny Carson atraía uma vasta audiência nacional em parte porque os telespectadores tinham pouco mais para assistir. Agora, todos se dividiram em silos culturais e não compartilham os mesmos pontos de referência. Um dos poucos assuntos em que pessoas de idades e origens extremamente diversas têm um interesse comum confiável é, por acaso, a política presidencial.
Este é o mundo em que Kimmel compete. A melhor piada que ele fez na última vez que apresentou o Oscar foi uma resposta improvisada a um insulto que Trump postou nas redes sociais. Um dos monólogos mais cativantes de Kimmel em seu talk show foi um argumento pessoal sobre saúde que ele apresentou depois que seu filho passou por uma cirurgia cardíaca de emergência. Esses momentos repercutem porque são genuínos; enquanto o combate político sempre atraiu olhares, eles também emergem em um contexto específico.
A era da comédia sobre temas atuais voltada para uma ampla monocultura acabou. Se você não gosta de liberais ou da mídia mainstream, não faltam artistas que misturam comentários conservadores com zombaria, desde Greg Gutfeld na Fox News até o podcaster conservador Steven Crowder e inúmeras contas na plataforma X. O que chama a atenção na cena de comédia stand-up este ano é como poucos especiais nas principais plataformas de streaming sequer tentaram abordar o governo atual e capturar o zeitgeist político.
Não está claro se isso ocorre porque Trump se tornou um assunto entediante, porque não passou tempo suficiente, ou porque artistas e executivos estão sendo cautelosos. O mais recente grande produtor de especiais é o Hulu, que pertence à mesma empresa que suspendeu Kimmel. Isso não é um bom presságio para o futuro da comédia política nos especiais de stand-up da plataforma.
Tudo isso resulta em um mercado aberto para críticas cômicas liberais ao poder neste momento. E os apresentadores de talk shows noturnos preencheram esse nicho. Os críticos que têm dito incessantemente que a programação noturna não importa mais precisarão se atualizar. O governo não persegue artistas porque eles são irrelevantes. Neste momento, independentemente do que você pense da política ou do humor de Kimmel, não há como negar que seu monólogo de terça-feira à noite foi o evento de comédia imperdível do ano.
Lembremos que Trump apareceu em talk shows da TV aberta por décadas. Ele adorava ser convidado. Então, talvez faça um sentido paradoxal que apenas ele pudesse ter a chance de fazer o impossível: tornar a programação noturna grande novamente.
