Em 29 de outubro de 2018, um dia depois de eleito presidente da República, Jair Bolsonaro atacou a Folha em entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo. “Não quero que [a Folha] acabe. Mas, no que depender de mim, imprensa que se comportar dessa maneira indigna não terá recursos do governo federal”. Depois, completou: “Por si só esse jornal se acabou”.
Um mês e meio depois, Eduardo Scolese, até então editor de Cotidiano, foi convidado para assumir o comando da editoria de Política da Folha.
Ele sabia que os anos seguintes representariam o maior desafio da sua carreira no jornal, iniciada em 1998. Não imaginava, porém, que esse trabalho seria tão espinhoso em diversos sentidos. Vinha pela frente um combo formado por uma cobertura de um presidente dado a lances de golpismo, uma pandemia que matou mais de 700 mil brasileiros e o desgaste mental decorrente desses dois pontos anteriores.
Um relato desse período está no livro “1.461 Dias na Trincheira – o Dia a Dia sob Bolsonaro no Relato do Editor de Política da Folha de S.Paulo”, que será lançado neste sábado, dia 27, em São Paulo.
Scolese conta que a ideia de reconstituir o período de 2019 a 2022 em um livro surgiu ainda durante o governo Bolsonaro, mas ele só conseguiu começar a organizar a publicação a partir de 2023. Ressalta que se trata de um “testemunho pessoal, e não uma visão institucional da Folha“.
“A Redação teve de aprender a lidar com um governo engajado na destruição de políticas públicas, na ruptura com parte da sociedade, no confronto sistemático, na repetição de mentiras, nos ataques furiosos e na adoção de uma política antivacina que parecia impensável”, escreve o autor na apresentação.
Os jornalistas, ele prossegue, “mergulharam em um trabalho incessante, uniram-se para cobrar reconhecimento e flertaram com o esgotamento. Com Bolsonaro e a pandemia, a saúde mental ficou em frangalhos”.
Segundo Scolese, os meses de março e abril de 2020 foram os mais difíceis destes quatro anos. Nesse intervalo, Bolsonaro passou a atacar o Judiciário e o Legislativo com mais veemência e também elevou o tom das críticas à imprensa. Foi ainda o momento de início da pandemia e do deslocamento dos jornalistas para o home office.
Como preconiza o seu projeto editorial, a Folha deveria cobrir o governo federal com independência e rigor, sem, no entanto, entregar-se ao clima beligerante, uma marca do bolsonarismo. “A cobertura do governo Bolsonaro deixava a faca no pescoço. Ele nos tratava como inimigos, e não podíamos errar em nada”, afirma.
Tamanha tensão, associada à preocupação com a Covid-19, cobrou um preço alto. A certa altura do livro, ele lista os desabafos que recebia de colegas, que iam de “as pessoas estão pirando” a “estou com enxaqueca permanente há quatro dias”.
Depois de crises de ansiedade e angústia, o próprio autor recorreu às sessões de terapia. “Eu deixava de fora tudo o que não fosse trabalho, o que trouxe uma série de efeitos colaterais.”
O jornal tomou, então, iniciativas, como a contratação de uma psicóloga, que atendia os jornalistas gratuitamente, e a organização de um curso sobre saúde emocional.
Reviver esses dias em que a saúde mental estava em jogo foi a experiência mais custosa para ele na escrita do livro. “Foi duro reler as mensagens que abordavam esse assunto, isso mexeu comigo novamente”, diz Scolese.
Com “1.461 Dias na Trincheira”, um dos seus objetivos principais é mostrar como funciona a Redação da Folha, especialmente quando está sob pressão. “Como surgiram teorias da conspiração na época, achei importante apresentar esses bastidores. O dia a dia é duro e sempre com o objetivo de fazer um jornalismo crítico e imparcial.”