Idealizado pelo ator Ney Piacentini e pelo contrabaixista Alexandre Rosa, o espetáculo “Infância” retorna a São Paulo para uma temporada no Ágora Teatro. A montagem, que nasceu de uma jornada dos artistas pelo sertão de Alagoas e Pernambuco, é inspirada pela obra autobiográfica de Graciliano Ramos. Em 2021, Piacentini e Rosa visitaram cidades como Quebrangulo, Viçosa, Palmeira dos Índios (AL) e Buíque (PE), onde vivenciaram a cultura local e absorveram a atmosfera descrita pelo autor. Essa imersão deu origem a uma adaptação que combina narrativa teatral e composição musical, destacando temas como as dificuldades educacionais e a violência institucional retratadas por Ramos.
Em cena, Piacentini conduz o texto com fragmentos da memória do escritor, enquanto Rosa cria uma paisagem sonora ao vivo com instrumentos como contrabaixo, viola caipira, violão, harmonium e shruti box. A trilha, influenciada por Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e Francisco Mignone (1897-1986), atribui temas instrumentais a personagens centrais da narrativa, como o pai (violão) e a mãe (viola caipira).
A cenografia minimalista — com livros, banquinhos de madeira e instrumentos musicais — reflete o estilo seco e objetivo de Graciliano Ramos, evitando nostalgias e priorizando a essência da obra. Após cada sessão, o público participa de um debate sobre o legado do autor e o processo criativo da peça.
Com circulação nacional desde 2022, “Infância” já foi apresentada em teatros, bibliotecas e feiras literárias, reforçando o diálogo entre literatura, teatro e música.
Três perguntas para…
… Ney Piacentini
Apesar de retratar um período histórico específico, a peça evoca reflexões atuais. Que diálogo “Infância” estabelece com o Brasil de hoje, especialmente no que diz respeito à educação e às relações familiares?
A meninice de Graciliano Ramos acontece logo após a abolição da escravatura, da Guerra do Paraguai e no período transitório entre o regime monárquico e a instalação da República no Brasil. A criança de então sofre, demasiadamente, a pressão desses acontecimentos. Lá, o país se encontrava com uma taxa de analfabetismo de 80%. A emancipação do garoto até aprender a ler, é um daqueles impulsos que estimularam gerações a se interessar pela leitura. E, década a década, essa taxa vem se reduzindo e hoje ela está na casa dos 6%. O exemplo de Graciliano foi, sem dúvida, entre tantos outros fatores, uma contribuição para a evolução educacional e cultural da nação.
Alexandre Rosa atribui temas instrumentais específicos aos membros da família de Graciliano (o violão para o pai, a viola para a mãe, etc.). Como essa escolha musical, que cria uma “assinatura sonora” para cada personagem, influencia a sua atuação e a maneira como você os interpreta?
Conversei agora mesmo com Alexandre e ele me encarregou de trabalhar sobre o que ele me disse. Não apenas o violão personifica o pai e a viola a mãe. O contrabaixo é figurado como a alta irmã mais velha, o chapéu sertanejo em cena, não é usado como um lugar para representar o sertão de Alagoas e Pernambuco, mas sim como uma espécie de bacia, na qual eu mergulho nele as minhas mãos para narrar o tempo em que o rapazinho Graciliano teve “…uma doença nos olhos que me perseguiu na meninice…”
A música de Rosa, que ele a trata como uma dramaturgia sonora, está a par a par com o texto mnemônico de Ramos. Quer seja, não são composições que ilustram com obviedade a atuação, mas que têm autonomia. Isso tudo compôs uma fraterna parceria entre mim e Alexandre, que renunciamos a um diretor, ou a um cenógrafo ou figurinista. A absoluta escassez de recursos nos fez colocar os músculos da imaginação, como disse o mais importante entre os mestres da atuação, o russo Constantin Stanislávski.
Vocês levaram a peça para o sertão, para a zona da mata, para locais que inspiraram a obra. Qual foi o sentimento de devolver essa história à sua origem? Houve um reconhecimento por parte do público local?
Essa experiência, ao menos para mim, foi a coisa que mais fez brotar em mim uma afetividade entre a nossa cena e às pessoas que nos assistiam. Na apresentação que fizemos na Biblioteca Graciliano, no povoado de Buíque, localidade onde se passa a vida do garoto/autor, as pessoas, usando gastas sandálias e roupas puídas, manifestaram uma escuta extraordinária. Sequer conheciam a convenção de aplaudirem ao final do espetáculo. A reação deles se deu através de um atento silêncio. Mas ali ficaram. Não se levantaram e se foram da Biblioteca. Foi algo que gerou entre nós uma humana comunhão. A partir disso, foi então que percebemos que tínhamos um trabalho popular, junto àquela gente tão simples e tão singela.
Foi uma viagem transformadora. As pessoas de lá tinham a terra e as pedras da região marcadas em seus corpos. Porém com uma postura altiva, sem autocomiseração. Um povo que extrai da pobreza uma perseverança diante da sua existência. E é do empréstimo dessa perseverança que seguimos, dividindo aprendizados mútuos entre cena e plateias, o que não é pouca coisa.
Ágora Teatro – Rua Rui Barbosa, 664, Bela Vista, região central. Até 5/10. Sábado, 20h e domingo, 19h. Não acontecem apresentações nos dias 30 e 31/9. Duração: 60 minutos. A partir de R$ 50 (meia-entrada) em sympla.com.br
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