Em 1964 a paraibana Maria Albuquerque Miranda, de oito anos de idade, abandonou João Pessoa e foi morar com a família em São Paulo. Pobres, moravam todos em São Miguel Paulista, na zona leste da cidade.
Em entrevista ao programa Roda Viva do início deste ano, a menina, a hoje a famosa cantora Roberta Miranda contou que chegou a “comer muro” para sobreviver. “Sabe o que é? Você vai descascando o muro e vai comendo até passar a fome”, relatou, às lágrimas.
No distrito pobre de São Miguel Paulista ela contou com a ajuda de outro nordestino em melhores condições, que ajudava sua família na miséria. Era o músico alagoano Hermeto Pascoal, falecido no último dia 13: “Quinzenalmente ele nos dava uma carne, um frango. Era uma festa para a gente”, lembrou Roberta.
Na época Hermeto se preparava para lançar seu primeiro disco com o grupo Sambrasa Trio. Era o início de uma carreira de grandes conquistas. Em 1966, Hermeto começou a tocar no Quarteto Novo, grupo fundamental para a sonoridade folclorista de Geraldo Vandré e para o início da MPB pré-tropicalista.
Nos anos 1970 esmerou-se no vanguardismo. Morou nos Estados Unidos, onde gravou com Miles Davis. De volta ao Brasil, criou seu grupo e gravou discos como “A Música Livre de Hermeto Pascoal” (1973) e “Zabumbê-bum-á” (1979). Também participou de festivais internacionais, como Montreux (Suíça), Free Jazz (São Paulo) e Live Under the Sky (Japão), e tocou com Elis Regina e Dominguinhos em apresentações memoráveis.
Hermeto foi duas vezes vencedor do Grammy e recebeu títulos de doutor honoris causa da Juilliard School (EUA), da Universidade Federal da Paraíba e da Universidade Federal de Alagoas. As composições inventivas demais aos ouvidos melódicos fizeram Caetano Veloso batizar a obra do alagoano de “hermetismo pascoal”.
Diante da morte do músico de vanguarda, Roberta Miranda publicou uma bonita homenagem em seu Instagram: “A gente morava em frente e eu ia vê-lo ensaiar. Minha mãe vinha me arrancar de lá pedindo para deixar o Hermeto trabalhar em paz. Ele dizia: ‘deixe essa menina aqui!’ Então Hermeto, você faz parte da minha vida, foi muito importante!”
Poucos fãs da música sertaneja conhecem Hermeto. O primeiro comentário do post de Roberta Miranda diz: “Passei a ouvir falar dele através da senhora!” Ao que Roberta respondeu: “Que bom!!”
Do outro lado, não é difícil ver artistas da MPB, do jazz e da música de vanguarda se regozijando em desprezar a música popular massiva, especialmente o sertanejo. Mas o bruxo de Arapiraca parece nunca ter caído nessa.
O encontro de Roberta Miranda e Hermeto Pascoal faz parte do rol de encontros improváveis da música brasileira. A distância estética não impediu que um reconhecesse o outro como artista.
Outro encontro de cair o queixo na música brasileira foi o namoro do multiinstrumentista de vanguarda Egberto Gismonti com a cantora da Jovem Guarda Wanderlea nos anos 70. Até hoje são amigos. Surpreendente também é que o refinado gaitista Gabriel Grossi seja primo de Victor e Leo. Ele até gravou com os irmãos mineiros no DVD “Ao Vivo em Floripa” (2012).
Os muros entre gêneros escondem as brechas através das quais a música brasileira não nos cansa de surpreender. Os hermetismos pascoais de Hermeto não o impediram de se relacionar com o Brasil popular massivo da música sertaneja de Roberta Miranda.
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