21.5 C
Nova Iorque
domingo, setembro 28, 2025
No menu items!

Buy now

spot_img
No menu items!

Até videntes tentaram achar Tenório Jr, morto na Argentina – 20/09/2025 – Ilustríssima

[RESUMO] Reportagem conta o clima de tensão e violência na Argentina pouco antes do golpe militar de 1976, quando o músico brasileiro foi sequestrado e assassinado em Buenos Aires, caso só agora esclarecido. Também traz relatos de amigos sobre vida e obra de Tenório Jr., pianista cujo grande talento foi ceifado pelo horror da repressão política.

Nos meses que antecederam o golpe militar argentino, em 1976, a violência política corria solta pelas ruas. No entanto, ainda hoje é comum considerar que as atrocidades da repressão e a defesa da luta armada ficaram circunscritas ao período da ditadura, que se estendeu até 1983.

Mas isso não é verdade. Até hoje, a polarização política, na qual estão envolvidos até mesmo historiadores sérios, deixa esse intervalo entre a morte do general Perón, em julho de 1974, e o golpe de 24 de março de 1976, dois anos depois, numa espécie de limbo.

Se essa época fosse mais bem estudada, talvez os crimes cometidos revelassem como os militares conspiraram para a queda da presidente eleita legitimamente, María Estela Martínez de Perón, a Isabelita, mulher do general e sua vice.

E também como atuavam os integrantes da Triple A (Alianza Anticomunista Argentina), um verdadeiro esquadrão da morte, criado pelo peronismo para controlar ativistas, militantes de esquerda e intelectuais. Ou seja, o cenário era tenso e complicado, e as ruas exalavam já o horror da repressão estatal.

Foi naquele contexto, alguns dias antes do golpe, que Vinicius de Moraes, sucesso popular também na Argentina, fez uma curta temporada de shows em Buenos Aires, acompanhado de músicos famosos, entre eles Tenório Jr., então com 35 anos, tido como o mais importante pianista do Brasil naquele tempo. Segundo relatos, Tenório circulava por lá com uma amante brasileira que havia viajado com ele. O caso foi acobertado na época, pois ele era casado com Carmen, que, no Rio, estava grávida do quinto filho do casal.

Após uma das apresentações dos brasileiros, teve início um verdadeiro pesadelo. Enquanto Vinicius foi com sua então namorada, Marta Santamaría partamento alugado, Toquinho e Tenório Jr. voltaram para o hotel Normandie, no centro de Buenos Aires.

Todos haviam se recolhido a seus quartos quando, na madrugada de 18 de março de 1976, Tenório Jr. saiu, em busca, acredita-se, de cigarros ou mesmo de drogas —segundo amigos, fumava maconha regularmente e consumia cocaína. “Aparecer ali, com aspecto de músico, cabelo e barba compridos, era chamativo demais. Qualquer patrulha, mesmo com nenhuma relação com a perseguição política, poderia tê-lo levantado”, diz o historiador e músico Uki Goñi, que conhece bem essa geografia da cidade naquele tempo.

Tenório Jr. nunca mais foi visto. O que ocorreu entre a madrugada e o início da manhã daquele dia, quando Toquinho, exasperado, ligou para Vinicius para dizer que o pianista havia desaparecido, foi um mistério por 49 anos. Até que a renomada Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), na última sexta-feira (12), deu a resposta à pergunta que se faziam os amigos, a família, os jornalistas, os investigadores e o mundo artístico.

A Justiça argentina informou à embaixada do Brasil em Buenos Aires que havia, por fim, identificado o corpo de Francisco Tenório Cerqueira Júnior, o Tenório Jr..

A versão que agora surge, a partir de informações da EAAF, da polícia e de outras entidades, é que o pianista foi sequestrado, talvez confundido com um guerrilheiro do Montoneros, organização armada da esquerda radical.

“Ele falava espanhol com muita desenvoltura, com sotaque de Buenos Aires. Por isso, talvez tenha sido mais difícil se livrar da apreensão dos policiais argentinos”, lembra a compositora Joyce Moreno, 77.

Após o rapto nas redondezas do hotel, teria sido levado a um terreno baldio entre a movimentada rodovia Panamericana e a avenida general Belgrano, na Província de Buenos Aires. Segundo o médico policial que o examinou, sem saber de quem se tratava, a morte foi causada por múltiplos impactos de bala.

A informação foi registrada em uma ficha, assim como as impressões digitais do pianista. Tenório Jr. foi então levado a uma vala comum do cemitério municipal de Benavídez, onde estão centenas de outros corpos.

“Seria muito difícil recuperar seus restos mortais, mesmo agora que sabemos que ele está entre os enterrados ali. Há muitos vestígios misturados, sem identificação. A família pode encaminhar esse pedido, mas seria dificílimo, passaram-se quase 50 anos”, disse à Folha a legista Mariana Segura.

Ela aponta que, se não tivessem sido coletadas as digitais naquele mesmo dia, seria impossível identificar o corpo do músico. Mas por que isso demorou tanto?

Calcula-se, através do cruzamento de relatórios do Exército, de contestações de familiares e outros métodos, que a ditadura argentina tenha assassinado mais de 20 mil pessoas —a cifra usada até pouco tempo atrás, 30 mil, hoje é contestada por historiadores. De todo modo, é possível imaginar os muitos outros casos ainda não esclarecidos, ainda mais os que ocorreram nas semanas antes da ditadura.

Depois do retorno da democracia, em 1983, a Conadep (Comissão Nacional de Pessoas Desaparecidas), instalada pelo presidente Raúl Alfonsín, determinou a abertura de fossas onde se escondiam os corpos e a identificação das vítimas. Foi apenas, contudo, em 26 de agosto de 2025, por meio da comparação das impressões digitais do músico, entregues pela família dele, com a dos cadáveres não identificados que se determinou que o famoso pianista brasileiro estava enterrado no cemitério de Benavídez.

O caso passa a integrar um processo judicial em andamento, denominado Plan Condor [em referência à aliança entre várias ditaduras dos anos 1970 na América do Sul], levado adiante pelo juiz Sebastian Casanello, 50. Agora a Justiça tentará definir os responsáveis pela morte do brasileiro.

A família de Tenório Jr. recebeu a notícia por meio da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos do Brasil. Logo depois, emitiu um comunicado: “É um alívio porque, finalmente, podemos saber com mais segurança o que aconteceu com ele naquele triste março de 1976. De alguma maneira, estaremos mais próximos. Tristeza pela confirmação de que Tenório foi vítima da violência e enterrado como um desconhecido, longe da família, dos amigos, dos parceiros de música”, diz o comunicado assinado pelos filhos Elisa, Andrea, Francisco e Margarida.

Por meio do assessor Vitor Nuzzi, os filhos afirmaram esperar pela punição dos responsáveis pelo assassinato. Carmen morreu em 2019, aos 75 anos.

Nesse período de quase 50 anos desde o desaparecimento, uma série de mentiras e notícias falsas dificultaram ainda mais o esclarecimento do caso. Um exemplo foi a entrevista de Cláudio Vallejos, ex-soldado do Serviço de Inteligência da Marinha argentina, à revista “Senhor”, em 1986. “Ele fez tudo isso por vaidade, e deixou a todos os amigos e parentes do pianista ainda mais angustiados e confusos do que estávamos”, diz Marta Santamaría.

Na versão fantasiosa de Vallejos, Tenório Jr. teria sido levado ao temido centro de detenção da Escola Mecânica da Armada (Esma) e ali torturado por militares argentinos e brasileiros em conluio por conta da Operação Condor, sendo executado pelo temido Alfredo Astiz.

Astiz foi um dos comandantes da repressão na Argentina, mandava e desmandava na Esma. Acabou condenado por crimes contra a humanidade. Todavia, segundo vários pesquisadores entrevistados pela Folha, é pouco provável que tenha dado o tiro de misericórdia em um prisioneiro comum.

E nem mesmo a Esma existia naquela época nos moldes do que virou depois que a ditadura começou —um centro de tortura e morte, onde presas grávidas davam à luz e eram assassinadas, onde os escolhidos para “desaparecer” saíam dali ao Aeroparque da cidade para morrer nos “voos da morte”, atirados ao mar.

A versão de Vallejos teve grande repercussão e atrapalhou as investigações. Agora ela cai por terra.

Na época também circularam boatos de que Tenório Jr. teria voltado ao Brasil, ou que estaria preso na Argentina, junto com prisioneiros políticos.

“Quando a notícia do desaparecimento chegou aqui, foi uma bomba! Ficamos totalmente desatinados. E o Vinicius ficou lá um bom tempo procurando, fez de tudo”, diz a cantora Joyce Moreno, que acabava de voltar de uma turnê com os mesmos músicos no Uruguai.

Uma das primeiras providências dos amigos foi organizar um show no teatro João Caetano, no Rio, com a arrecadação voltada para a mulher, Carmen, e os filhos de Tenório Jr. Dele participaram Clementina de Jesus, Egberto Gismonti e muitos outros. O evento foi planejado por Hermínio Bello de Carvalho e Joyce Moreno. “Os mais de mil lugares do teatro ficaram ocupados. Da coxia os artistas escutavam as pessoas esmurrando a porta dos fundos para tentar entrar, já que os ingressos esgotaram completamente”, lembra Joyce.

Ainda assim, quem segurou a barra financeira da família, a partir desse momento, foi o cunhado do músico, o pintor Roberto Magalhães.

Segundo conta a historiadora Liana Wenner no livro “Vinicius Portenho” (ed. Casa da Palavra), por recomendação do poeta Ferreira Gullar, amigos e familiares buscaram uma vidente na Argentina que pudesse dar pistas do paradeiro do pianista.

Desta história, da qual não ficaram registros documentais, apenas relatos orais, não saiu muita coisa. À vidente foram entregues diversas fotos e cartas de Tenório Jr., razão pela qual hoje há tão pouco material iconográfico do artista. As forças do além não ajudaram a ninguém, apenas sugeriram que ele estaria no sul da Argentina.

“Naquele momento de desespero, procurou-se de tudo. O pai do Tenório era um policial e fez suas buscas. E a Carmen foi procurada por muitas pessoas ligadas a coisas mais esotéricas. Até médiuns e videntes de fora do Brasil foram procurá-la. Teve um vidente europeu, ela ficou muito impressionada, que disse que tudo iria terminar bem e com uma “big laugh” [grande risada]. Uma coisa maluca!”, relembra Joyce.

Em 1976, Tenorio Jr., apesar de seu talento, sentia-se desanimado com suas perspectivas econômicas, como diziam seus amigos.

Seus anos de ouro após o lançamento do disco “Embalo” (1964), no qual gravou 11 canções ao piano, tinham passado. Restava a ele, não que fosse pouco, embarcar como músico de apoio em bandas, como a de Vinicius. O pianista reclamava de falta de dinheiro. No Rio, sua volumosa família ganharia mais um membro.

Isso alimentou lendas e especulações das mais imaginativas, como as de que ele pudesse ter fingido o sumiço para ficar com uma amante rica e fazendeira da província de La Pampa. Nenhum indício concreto aponta para isso, mas a história alastrou-se nos relatos populares.

Com “Embalo” Tenório Jr. viveu o auge se sua carreira. O disco foi um marco na música instrumental brasileira, analisa Ruy Castro, escritor e colunista da Folha.

Celso de Almeida Brando, hoje com 85 anos, foi o violonista do álbum. Tinha então 24 anos, era recém-formado em arquitetura, assim como o baixista do disco Sergio Barrozo, que retratou amigos músicos em charges.

Tenório estudou Medicina, “mas largou, estava totalmente interessado pela música”, conta Brando. Para ele, o amigo teria sido o maior pianista brasileiro, tamanho era seu talento.

Ambos eram amigos de juventude, visitavam a família um do outro, saíam para tomar chope, conversar e tocar juntos. “Ele era muito engraçado, como a maioria dos músicos, espirituoso, botava apelido sempre com seu humor ácido”, relembra Brando.

Nos anos 1960, a família de Brando alugava uma casa na rua Barão de Itapagipe, e Tenório fazia hora lá, até sua namorada Carmen sair do trabalho, perto dali. Quando se casaram, foram morar no Cosme Velho, onde nasceram os cinco filhos do casal. Foi o último endereço do pianista.

Boêmio e sedutor, Tenório Jr. teve vários casos, um deles com a cantora Dóris Monteiro, que morreu em 2023, aos 88 anos. Segundo conta Ruy Castro: “A Dóris era bonitérrima, nos anos 1960/70. Me contou que ela namorou o Tenório Jr., foi uma coisa rápida. Ela estava no carro com ele dirigindo, aí fechou o sinal e ele acendeu um baseado enquanto esperavam o sinal abrir. E a Dóris, que era totalmente careta, ficou horrorizada e falou: ‘Abre a porta que eu vou descer agora’. E nunca mais viu o cara”.

O fato de Tenório Jr. ter tido amantes incomodou Carmen. Um dia, Joyce Moreno encontrou Roberto, irmão de Carmen, um tempo após o desaparecimento. Ele disse para a cantora: “Mesmo que Tenório aparecesse, duvido que a Carmen o aceitasse de volta. Todos os podres vieram à tona”. A família já sabia da brasileira que acompanhava o pianista na Argentina.

O compositor e pianista carioca Cristovão Bastos, 78, recorda a primeira vez que ouviu o Tenório Jr tocar. Foi na boate Monsieur Pujol, empreendimento de Alberico Campana —dono da Bottle’s, no Beco das Garrafas— em sociedade com Carlos Miele e o Ronaldo Bôscoli, a famosa dupla Miele e Bôscoli.

Localizada na rua Anibal de Mendonça, em Ipanema, a casa reuniu alguns dos maiores talentos da cena musical brasileira. Bastos confirma o forte impacto causado por “Embalo” na cena musical e lamenta o abrupto fim de um talento poderoso. “A qualidade musical era muito boa. Eu também tocava na noite e os músicos se visitavam, grandes nomes tocaram na noite carioca: Laercio de Freitas, Dom Salvador, Gilson Peranzzetta e outros”, lembra Bastos.

Ao som de “Embalo”, Ruy Castro recebeu a Folha em 2023, quando nossa apuração para esta matéria ainda estava no início. Disse que Tenorinho, como o músico era chamado carinhosamente por Vinicius de Moraes, era “um dos melhores pianistas da bossa nova e um dos principais que o Brasil já teve”. No documentário animado dos espanhóis Fernando Trueba e Javier Mariscal, “Atiraram no Pianista” (2023), o colunista da Folha também aparece, tecendo comentários elogiosos a Tenório Jr.

A Argentina tem muito a nos ensinar sobre punir crimes cometidos pelo Estado. Luis Moreno Ocampo, 73, promotor do Juicio a Las Juntas, que julgou os repressores da ditadura militar argentina (1976-1983) —cuja história pode ser vista no filme “Argentina, 1985” (2022)—, destaca a importância, histórica e pessoal, de investigar e esclarecer a verdade.

“Em momentos em que vemos horrorizados o que ocorre em Gaza ou na Ucrânia, temos de aprender a importância de utilizar novas tecnologias para ajudar as vítimas de crimes massivos. A Argentina elaborou suas técnicas de recuperar os restos sem destruí-los, contando com o apoio de geneticistas que quiseram encontrar as conexões dos avós com os netos, o que melhorou as técnicas de reconhecimento. Isso hoje faz com que a família de Tenório Jr. possa, finalmente, depois de cinco décadas, descansar em paz. As pessoas têm de entender que o crime de desaparição forçada faz com que os familiares nunca possam enterrar suas vítimas. No caso da família de Tenório, houve por um tempo alguma esperança de que apareceria vivo. Agora sabe, com tristeza, o que ocorreu, mas também tem a ideia de que é possível encerrar o que passou.”

Related Articles

Stay Connected

0FansLike
0FollowersFollow
0SubscribersSubscribe
- Advertisement -spot_img

Latest Articles