
A bilirrubina, um pigmento amarelado normalmente visto como um sinal de distúrbio no fígado, pode ajudar no combate à malária. Testes mostram que a bilirrubina provoca a morte do parasita que causa a doença e impede a evolução para casos graves. No futuro, espera-se que essa substância seja uma estratégia terapêutica contra a infecção.
A icterícia, que é o amarelecimento da pele e dos olhos humanos, é um sintoma comum da malária. Esse distúrbio na cor do corpo humano ocorre a partir da acumulação de bilirrubina, substância de coloração amarela, na corrente sanguínea. De praxe, médicos consideram a concentração de bilirrubina como um indício de algum problema no fígado –o órgão é o responsável por processar a substância.
Mas um novo estudo publicado na revista científica Science defende que, na realidade, a bilirrubina é uma forma natural do corpo humano de combater a malária. Os pesquisadores partiram do ciclo do Plasmodium falciparum, um dos protozoários que causam malária, para chegar a essa conclusão.
No corpo humano, estes parasitas infectam inicialmente os glóbulos vermelhos. Dentro dessas células, eles se reproduzem até um momento em que os glóbulos se rompem por conta da alta taxa de reprodução do protozoário. Nesse instante, também existe a liberação do heme, que é uma estrutura com átomos de ferro necessários para o transporte de oxigênio pela hemoglobina.
O heme liberado no sangue é tóxico tanto para o parasita quanto para os humanos, afirma Miguel Soares, investigador principal do Gimm (Instituto Gulbenkian de Medicina Molecular, em tradução para o português) e um dos autores do novo estudo. Soares explica que, em uma pesquisa já publicada há anos, ele e outros cientistas concluíram que o heme é o principal responsável por casos graves de malária.
O organismo humano conta com mecanismos para barrar o acúmulo de heme, evitando assim o agravamento da doença. Essas estratégias levam a maior concentração de bilirrubina na corrente sanguínea. Soares e outros pesquisadores, como a estudante de doutorado Ana Figueiredo, buscaram entender se a substância amarela por si só também pode diminuir os riscos associados à malária.
O estudo inicialmente foi baseado numa análise de 42 pacientes com malária. Os pesquisadores observaram que aqueles com casos assintomáticos ou leves da doença apresentaram uma maior concentração de bilirrubina na corrente sanguínea.
A constatação foi um primeiro passo, mas não comprovou o papel positivo da bilirrubina contra a malária em razão do baixo número de pacientes analisados. Então os pesquisadores desenvolveram experimentos em laboratórios para consolidar mais evidências sobre o tema. Inicialmente, camundongos foram geneticamente modificados para não produzirem bilirrubina. O resultado foi que aqueles sem a capacidade de produzir a substância morriam em questão de dias. “Se eles produzissem bilirrubina, todos sobreviviam”, completa Soares.
Outro experimento foi impossibilitar a produção de bilirrubina, mas depois injetar a substância diretamente nos animais, o que causou a sobrevivência dos camundongos. Um terceiro cenário foi impedir a conjugação da bilirrubina pelo fígado, o que proporciona a concentração da substância na corrente sanguínea. Novamente, os camundongos sobreviveram.
Os pesquisadores observaram que a bilirrubina age de diferentes maneiras contra o Plasmodium falciparum, diminuindo sua virulência e capacidade de levar à morte. Um desses mecanismos é por impedir a digestão de aminoácidos essenciais pelo parasita. O protozoário realiza essa digestão em um saco alimentar, que pode ser comparado a um intestino. A bilirrubina destrói esse saco, diminuindo a disseminação do parasita.
A bilirrubina também age contra a malária por impedir a produção de cristais de hemozoína. O protozoário desenvolve esses cristais para controlar os átomos de ferro liberados quando os glóbulos vermelhos são rompidos. Com a presença de bilirrubina, no entanto, os pesquisadores observaram que os cristais foram quebrados.
“Fizemos um ensaio bioquímico e percebemos que a bilirrubina para os cristais. Eles começam a crescer, mas depois param. Isso é igual a cloroquina. Então a bilirrubina funciona com o mesmo princípio da cloroquina, mas funciona 60 vezes pior [para o protozoário]”, afirma Soares.
Para o futuro, Soares aponta que existe a possibilidade de utilizar as descobertas do novo estudo como meios terapêuticos contra a malária. Um objetivo inicial é realizar pesquisas em humanos para averiguar se as conclusões observadas nos camundongos serão as mesmas em pessoas.
Mais para a frente, outro objetivo é potencialmente desenvolver uma droga que imita a bilirrubina e age no combate à malária. Isso, no entanto, é algo que ainda demanda muito estudo para averiguar se realmente será possível.