Já se vão quatro meses desde que Yamandú Orsi, 58, assumiu a Presidência do Uruguai. O discreto historiador busca não imiscuir-se publicamente em temas polêmicos da ordem global e prega o diálogo com todos os seus pares, pertençam eles ao espectro político que for.
Mas tem, por óbvio, seus laços mais estreitos. O apadrinhado de José “Pepe” Mujica (1935-2025), morto em maio, é próximo de Lula, com quem já esteve no Brasil. A convite do governo do petista, participa como convidado da cúpula do Brics no Rio e elogia o bloco.
Em entrevista à reportagem por troca de mensagens, Orsi defende a modernização do Mercosul, que acaba de se reunir na Argentina; atenua as diferenças com o vizinho Javier Milei, com quem ainda não teve nenhum encontro bilateral; diz não reconhecer o resultado das eleições na Venezuela, globalmente avaliado como fraudado; e comenta a situação da esquerda na América Latina.
Sobre a ausência de Mujica, fala sobre suas promessas feitas ao “velho Pepe” e sobre os ensinamentos: “Estou convencido de que os projetos políticos devem superar as lideranças pessoais”.
Perdemos recentemente Pepe Mujica, que, junto a Marcos Carámbula, entendo ter sido um dos seus mestres na política. Mujica era considerado uma bússola para a esquerda regional, não apenas para a uruguaia. Que tipo de desafios sua ausência deixa para esse setor?
Embora tenha sido anunciada, a morte de Pepe foi um forte golpe. É uma perda muito dura para a Frente Ampla e para a democracia uruguaia. Carámbula [ex-governador de Canelones] e o velho Pepe foram minhas referências. O legado dele é gigantesco.
Mas acredito ter claros os seus legados, começando pelo que ele disse: “Um bom dirigente é aquele que deixa preparado o time que o supere com folga”. Tenho clareza sobre por quê e para quê aceitei este desafio. O combate à desigualdade, a luta para que muitos dos meus compatriotas saiam do poço social, econômico e emocional em que se encontram, é minha obsessão. Meu gabinete, meus companheiros e eu assumimos esse compromisso, e eu o renovei, uma vez mais, diante do túmulo de Pepe: “Com o velho Pepe eu não vou falhar”, disse a mim mesmo.
Além disso, aprendi com Mujica que sempre é necessário insistir na negociação política para alcançar amplos acordos sobre temas centrais. Outras lições foram sobre os radicalismos sem sentido, as polarizações infrutíferas e os tribunas inúteis para medir o quanto se move um esquerdômetro superado pela realidade. As mudanças serão mais profundas e duradouras quando envolverem amplos setores da sociedade. É preciso ter isso bem presente. Estou convencido de que os projetos políticos devem superar as lideranças pessoais, a vida e a história já se encarregaram de demonstrar isso. E nisso sou inflexível.
Entendo que um dos principais desafios nos setores de esquerda latino-americanos é focar menos as lideranças pessoais. Isso ocorre no Brasil (Lula), na Argentina (Cristina Kirchner), no Equador (Rafael Correa). Como enfrentar essa tarefa que, ao final, também impõe desafios como a dificuldade de renovar os quadros?
Além de ser personagem deste tempo, como professor de história eu tive a oportunidade de estudar diversos processos políticos em nossa região. Mas, nesta ocasião, opto por falar sobre a experiência concreta da esquerda uruguaia. Não sou de pregar, muito menos de dar lições a ninguém.
Por formação e escolha própria, participo de projetos coletivos. E, como uruguaio, bebo de uma cultura política que inclui alguns dos partidos mais antigos do mundo —os Blancos e os Colorados— e uma esquerda com partidos de mais de um século. No Uruguai, todas as semanas —repito, todas as semanas— as direções dos partidos políticos com representação parlamentar se reúnem. Já tivemos governos de todos os partidos. A alternância é um dado da realidade, e as mudanças e o passar do tempo fazem com que novas gerações assumam responsabilidades de governo.
Temos muitos países na região e na Europa extremamente polarizados. Mas, no Uruguai, parece não haver espaço para a ultradireita. Por quê?
Nós nos esforçamos muito porque sabemos que nada está garantido; nem nossa democracia, nem nossa estabilidade, muito menos a credibilidade do Uruguai. Sabemos que não basta uma força política, por mais que esteja no governo; é preciso muitas políticas de Estado e, sobretudo, muita consciência de que nenhum partido político, sozinho, conseguirá enfrentar esses desafios.
É uma verdadeira cultura que existe no Uruguai, e esperamos que essa cultura se mantenha e se desenvolva, apesar dos desacordos que naturalmente ocorrem como em qualquer outro país.
Poderia fazer uma avaliação da situação da esquerda na América do Sul?
Nossa América Latina precisa continuar consolidando seu processo democrático institucional, independentemente do espectro político dos governos que estejam no poder. Nossa relação com nossos amigos brasileiros, colombianos ou chilenos é naturalmente muito importante. Mas nossa relação com outros países da América Latina também é fluida.
Destaco a presença de 14 chefes de Estado durante minha posse, representando diferentes realidades políticas, tanto da América Latina quanto da Europa. Este será nosso horizonte para o futuro, no qual teremos uma relação muito importante com países decisivos da América Latina, como o México.
Em relação a Milei, qual é a situação atual da relação entre Uruguai e Argentina? São governos com roupagens políticas bem diferentes. Há previsão de uma visita oficial a Buenos Aires ou de uma visita do líder libertário a Montevidéu?
As relações entre Argentina e Uruguai são muito boas. As “roupagens políticas muito diferentes” que você menciona foram, afinal, escolhidas pelos cidadãos de cada país. Quando o soberano se pronuncia, todo o resto é supérfluo. Quem sou eu para opinar ou me imiscuir em uma decisão livremente adotada pelo povo argentino?
Os chanceleres e ministros de Uruguai e Argentina têm, isso eu sei, um vínculo direto, fluido, e conversam frequentemente. Tive a oportunidade de conversar com Milei na cúpula [do Mercosul], e buscaremos o momento adequado para realizar as reuniões bilaterais necessárias. O essencial não é se há ou não uma reunião, mas o quanto podemos avançar juntos como países. E asseguro que estamos avançando.
Venezuela e Uruguai anunciaram a reativação dos serviços consulares. O Uruguai deixou de reconhecer Edmundo González como presidente eleito. Qual é a avaliação do seu governo sobre o regime de Maduro?
Recentemente acordamos reativar os mecanismos consulares, que para nós eram fundamentais. Durante este período em que praticamente todas as relações ficaram paralisadas, os emigrantes uruguaios naquele país enfrentaram grandes dificuldades no dia a dia. Além disso, é muito importante que também se reative o trabalho consular para os venezuelanos no Uruguai.
Mas fomos claros desde o início: este passo, com o qual estamos muito satisfeitos e consideramos um bom caminho, não significa reconhecer os resultados das últimas eleições presidenciais. Mantemos a mesma posição de sempre.
Como entende o papel do Brics no cenário mundial?
Sem dúvida, o Brics representa hoje um Sul Global [grupo de países em desenvolvimento] extremamente ativo, com uma incidência muito significativa do ponto de vista econômico.
A presidente Dilma Rousseff formalizou o convite para que o Uruguai seja membro do Banco do Brics. O governo quer concretizar essa ideia? Que tipo de relação o Uruguai pretende estabelecer com o bloco?
Minha presença na reunião do Brics no Rio de Janeiro, como convidado do presidente Lula, é uma demonstração clara da atenção que estamos dando a esse movimento de países tão relevantes.
Quando assumi a Presidência, em março, nos deparamos com um processo avançado do governo anterior, de Luis Lacalle Pou, para ingressar no Banco do Brics. Para concretizar essa entrada ainda são necessárias gestões parlamentares e outras ações, que estamos avaliando, pois o ingresso não estava originalmente em nossa agenda.
Em relação ao Mercosul: o bloco recentemente ampliou a lista de produtos sem tarifas, mas o debate sobre a flexibilização para acordos com outros países continua em aberto. Como vê a situação atual do bloco? Considera necessária a flexibilização?
Hoje, ao ler os documentos do Mercosul, não falamos de flexibilização, mas de modernização. Isso significa reconhecer que o Mercosul precisa ser repensado em vários aspectos, pois enfrentamos muitos limites em nossas ações. É necessário assumir isso, assim como garantir que os países do bloco atuem com a maior liberdade possível, de acordo com suas estratégias.
Estamos muito otimistas quanto ao possível acordo entre o Mercosul e a União Europeia e entre o Mercosul e o Efta [concluído na quarta (2), após a realização da entrevista], que poderiam ser assinados em dezembro, ao final da presidência [rotativa] brasileira. É simples entender que um acordo desse tipo mudará completamente a dinâmica para os países do Mercosul e também para a União Europeia, pois assinaremos algo sem precedentes desde o nascimento do bloco, em 1991. Estamos falando de uma comunidade de [quase] 800 milhões de pessoas.
Embora os membros do Mercosul tenham ampliado a lista de produtos sem tarifas, o governo de Lula propõe impor certos limites. O Uruguai está de acordo com o Brasil?
Como em qualquer negociação, naturalmente há aspectos que cada país precisa proteger. Mas isso é a dinâmica natural do Mercosul, não há nada de especial. Trata-se apenas de uma negociação no contexto de respeito mútuo e da tradição que estamos desenvolvendo no Mercosul em relação à área comercial.
Colegas do jornal Búsqueda relataram que, segundo a chancelaria do Uruguai, há expectativa de que, com o Brasil na presidência do Mercosul, o diálogo com a China seja reativado. Considera necessário avançar na relação com a China? Como?
O que os jornalistas do Búsqueda mencionam não é confirmado pela chancelaria uruguaia, pois não estamos esperando que o Brasil assuma a presidência do Mercosul para reativar o diálogo com a China. Esse diálogo já existe e é conduzido por cada país.
Naturalmente, nossa intenção é avançar nos múltiplos acordos potenciais que o Mercosul possa estabelecer, incluindo a concretização do acordo com a União Europeia até o final do ano. Outros diálogos acontecerão, mas qual será a dinâmica? Não sabemos e não podemos afirmar o que o Brasil fará durante sua presidência.
Como avalia as ações de Donald Trump em relação à América Latina?
O presidente não respondeu.
Raio-X | Yamandú Orsi, 58
Formado em história e ex-professor, foi por duas gestões consecutivas (2015-2020 e 2020-2024) governador de Canelones, departamento com 520 mil habitantes. Com a bênção e a torcida de Pepe Mujica, em 2024 foi escolhido pela agrupação de esquerda Frente Ampla para concorrer à Presidência. Venceu o pleito e assumiu o cargo em março deste ano.