Celso Amorim defende relação mínima do Brasil com Israel – 04/07/2025 – Mundo

O ex-ministro das Relações Exteriores e atual assessor internacional da Presidência, Celso Amorim, disse à Folha que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não deve aceitar a indicação de um novo embaixador por Israel devido à ofensiva militar na Faixa de Gaza e às milhares de vítimas palestinas.

Amorim, o principal conselheiro de Lula para temas internacionais, também defendeu que o Brasil ingresse formalmente na ação movida pela África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça.

“A posição correta hoje, na minha opinião, é a gente entrar como parte na ação da África do Sul por genocídio; manter as relações [com Israel] em níveis mínimos e ser muito severo no acordo de livre comércio, talvez até suspendê-lo”, disse Amorim.

Ele também afirmou que é preciso diferenciar o povo judeu e o Estado de Israel, que tem direito de existir, do governo do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, “que está praticando um genocídio”.

O ex-ministro também lamentou a decisão do dirigente da China, Xi Jinping, de não comparecer à cúpula do Brics no Rio de Janeiro, a partir deste domingo (6). Apesar disso, ele destacou que Lula esteve com Xi por duas ocasiões nos últimos seis meses e que o Brasil não se ofende com a ausência.

Ainda em relação ao Brics, Amorim disse que o bloco vem, curiosamente, defendendo o sistema internacional, que está sob ataque do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Os objetivos do Brics, hoje ampliado, seguem os mesmos da criação do bloco, em 2009?

Acho que os objetivos básicos continuam os mesmos. Agora, o mundo está mudando, e você tem que se adaptar um pouco à realidade para que o grupo continue a ser relevante. O Brics foi um acrônimo criado por um economista [Jim O’Neill], que fazia referência às grandes economias de países em desenvolvimento que tinham peso na realidade econômica internacional —tinham peso, mas não representação. Tudo era decidido pelo G7 [grupo de nações industrializadas liderado pelos EUA]. É evidente que o Brics era uma força nova, que teria um impulso, e isso coincide com outro processo: a criação do G20 [fórum das principais economias desenvolvidas e emergentes] de cúpula.

O Brics passou a ter uma importância muito grande no G20, e isso obviamente tinha repercussão nas decisões econômicas. A primeira, e acho que única, reforma que teve no sistema de cotas do FMI [Fundo Monetário Internacional], embora modesta e insuficiente, deu-se já depois de o Brics integrar o G20. Isso era aquela época, mas o mundo cresceu muito. Países árabes passaram a ter uma influência muito grande, não só econômica mas política.

Acho que houve um aumento [de membros no Brics] para levar essa nova realidade em conta. Tínhamos poucos africanos —a África do Sul era a única. Entraram também Etiópia, Egito. Na minha opinião, o Egito deveria estar no G20. É uma realidade nova. Curiosamente o G7 não mexeu, porque ninguém mais enriqueceu para fazer parte.

Qual o papel do Brics num mundo em que o multilateralismo está sob ataque dos EUA?

O multilateralismo de hoje não é idêntico ao multilateralismo de 1945 [ano da criação da ONU]. Nós defendemos o sistema multilateral. É surpreendente que a maior potência do mundo, que criou o sistema multilateral, tenha se afastado e o abandonado.

Cada vez que há uma negociação: “O presidente Trump conseguiu isso, o presidente Trump conseguiu aquilo”. Melhor que consiga do que não consiga, mas acontece que as coisas têm que ser discutidas multilateralmente. Tem que levar em conta as regras da ONU [Organização das Nações Unidas], as regras da OMC [Organização Mundial do Comércio]. A OMC praticamente acabou. Ela era tão fundamental quando foi lançada com a Rodada Uruguai e depois na Rodada Doha. Com todos os defeitos que tinha, às vezes você tinha Brasil e União Europeia defendendo a mesma posição em termos multilaterais, embora discordassem nos princípios. Aquilo era um órgão multilateral, hoje em dia acabou. Veja bem, isso não é uma coisa banal. Era colocar o comércio internacional dentro de padrões.

O que havia antes e que está voltando? Acordos recíprocos que só fizeram estimular o protecionismo e contribuíram para a Segunda Guerra Mundial.

A presidência brasileira do Brics começou sob ameaças de Trump. Elas interferiram?

Se a gente ficar com medo de ameaça, a gente não faz nada. Não teria existido Mercosul, não teria existido OMC. Se começar a ficar com medo de ameaça, rapaz, você não sai de casa.

Vê risco de uma cúpula do Brics esvaziada?

Vamos por partes. O el-Sisi [presidente do Egito] está vivendo numa região que está toda em estado de guerra. E o Egito joga um papel fundamental na mediação e na ajuda humanitária. Eu acho que é perfeitamente compreensível. Claro que a gente desejaria que ele viesse.

No caso do Putin [presidente da Rússia], há uma decisão do Tribunal Penal Internacional. Eu acho que, provavelmente, ela acabaria no Brasil sendo revogada pelo Supremo [Tribunal Federal], porque você não pode aplicar esse tipo de pena contra um chefe de Estado estrangeiro, um país com o qual você tem relação. Mas pode haver, digamos, um incômodo, um inconveniente.

E o Xi Jinping?

O presidente Xi Jinping é hoje uma personalidade de grande importância no mundo. Evidentemente as decisões que ele toma têm um impacto que vão além, digamos, da posição dele na burocracia chinesa. Então eu lamento. É uma pessoa que tem grande influência. Mas também você tem que respeitar. Nós tivemos duas reuniões [do presidente Lula com ele] em seis meses. Não podemos aqui dizer que estamos ofendidos, nem nada disso. Agora, que ele faz falta, faz.

Sobre o conflito em Gaza, o Brasil chamou de volta o embaixador de Tel Aviv. E não temos novo embaixador de Israel no Brasil…

O novo [embaixador] não recebeu o agrément [aval do Brasil], nem vai receber. Nem tem porque receber. O Chile já rompeu relações diplomáticas com Israel. A Irlanda e a Eslovênia tiveram muitas restrições —muitos países europeus também— porque Israel está praticando um genocídio. O Brasil apoiou a ação da África do Sul na Corte Internacional de Justiça.

É claro que a gente é contra o ataque do Hamas [de outubro de 2023], não há dúvida, mas a reação é totalmente desproporcional. Você está matando um povo inteiro. É muito ruim matar 2.000 pessoas, é péssimo, é horrível e condenável. Mas matar 60 mil, 70 mil… mulheres e crianças na fila humanitária, é impensável.

A decisão, então, é a de não dar aval para a indicação de um novo embaixador israelense?

Não está pensando em dar. O futuro eu não sei, não tenho bola de cristal aqui na minha frente. Não há intenção de dar nesse momento.

Mas deixa eu dizer a minha posição sobre a questão de Israel. Não tem nenhum radicalismo nisso. É preciso distinguir o povo judeu, que deu imensas contribuições à humanidade; o Estado de Israel, que tem direito de existir e de se defender contra terrorismo ou o que for; e o governo Netanyahu, que está praticando um genocídio.

O governo Lula apoia, mas não entrou oficialmente na ação movida pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça, na qual acusa Israel de genocídio.

A gente está vendo se dá para entrar.

O que mais o Brasil pode fazer?

Uma alternativa que o Chile seguiu, de romper relações, tem também inconvenientes. Nós retiramos o nosso embaixador depois que ele foi humilhado em Israel e que o Lula foi declarado persona non grata, mas tem brasileiros em Israel que precisam de proteção. Mesmo os brasileiros na Palestina —para agir em defesa deles, é preciso da anuência de Israel, ou fisicamente tem que passar por Israel.

A posição correta hoje, na minha opinião, é a gente entrar, sim, como parte na ação da África do Sul por genocídio; manter as relações [com Israel] em níveis mínimos e ser muito severo no acordo de livre comércio, talvez até suspendê-lo.

Virar parte da ação sul-africana não pode criar um atrito com os Estados Unidos, aliados de Israel, num momento tão delicado e com Trump, um presidente imprevisível?

Se prender um narcotraficante americano aqui, você pode dizer que isso pode fazer mal às relações com os Estados Unidos. Mas eu estou agindo dentro da lei. Nesse caso, da lei internacional.

Como o Brasil vai encarar eventuais sanções dos Estados Unidos contra o ministro Alexandre de Moraes ou algum ministro do Supremo?

É uma coisa totalmente absurda. Qual vai ser a medida concreta que a gente vai tomar, eu não sei. Mas é uma coisa totalmente absurda e inaceitável. Eu não creio que os Estados Unidos chegarão a esse ponto, mas, se isso ocorrer, haverá certamente medidas da nossa parte.

Os EUA ameaçaram suspender as negociações comerciais com o Canadá por causa de um imposto sobre as big techs. Os americanos já tinham ameaçado a União Europeia com retaliação por causa da regulação da internet. O Brasil está no meio de uma tentativa de regulação. O que opina da política americana para essas grandes empresas de tecnologia?

Essas ações unilaterais que estão sendo tomadas são a maior ameaça à ordem mundial atual. Elas contrariam totalmente o espírito do multilateralismo, que é a defesa que a gente tem da paz.

Por que houve tanta ênfase no multilateralismo? Porque ele garantia a paz. Porque a mesma regra que valia para um, valia para outro —para todos. As regras eram aplicáveis a todos. Se você começar a aplicar regras unilaterais, eu acho que você está, digamos, aprofundando os riscos de uma guerra mundial.


Raio-X | Celso Amorim, 83

Ingressou no Instituto Rio Branco em 1965. Ao longo de extensa carreira no Itamaraty, serviu na sede da OEA (Organização dos Estados Americanos) e em Haia. Dirigiu o Departamento Econômico do Ministério de Relações Exteriores e foi chefe da missão permanente do Brasil em Genebra. Foi chanceler em dois governos. Primeiro, no de Itamar Franco, tendo assumido em 1993. Depois, nas duas primeiras gestões Lula, de 2003 a 2010. Entre outros cargos, também ocupou o posto de representante do Brasil na missão da ONU. Foi ainda ministro da Defesa da ex-presidente Dilma Rousseff. Desde 2023, comanda a assessoria internacional da Presidência da República.

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